sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE II



 II - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA FORMAÇÃO APOSTÓLICA


2.1 - A penitência sozinha não dá reparação à culpa

   Então a Verdade eterna arrebatou em si, com maior violência, o desejo daquela serva. Tal qual acontecia no Antigo Testamento, quando o fogo do céu descia sobre os holocaustos oferecidos a Deus e consumia a oferenda a ele agradável, a doce Verdade enviou o fogo do Espírito Santo sobre aquela serva e aceitou o sacrifício de amor que ela fazia de si mesma. Dizia-lhe:
   - Minha filha, não o sabes? Todos os sofrimentos que um homem suporta ou pode suportar nesta vida não são suficientes para satisfazer a menor culpa. Sendo eu um bem infinito, a ofensa contra mim pede satisfação infinita. Desejo que o compreendas. Os males desta existência não são punições, mas correção a filho que ofende. Assim, a satisfação se dá pelo amor, pelo arrependimento e pelo desprezo do pecado. Esse arrependimento é aceito no lugar da culpa e do reato, não pela virtude dos sofrimentos padecidos, mas pela infinitude do amor. Deus, que é infinito, quer amor e dor infinitos.
   A dor por ele desejada é infinita em dois sentidos: com relação à ofensa feita contra o Criador e com relação àquela feita ao próprio homem. Quem se acha unido a mim por um amor infinito, sofre quando me ofende ou vê que outros me ofendem; igualmente, quando padece no corpo ou no espírito, qualquer seja a sua origem, tem merecimento infinito. Dessa forma satisfaz pela culpa, que era merecedora do inferno. Embora praticadas no tempo finito, são ações válidas, pois fortalecem-nas as virtudes, a caridade, a contrição, o desprezo da culpa, que são infinitos.
   Foi quanto ensinou Paulo, ao afirmar: "Se eu falasse a língua dos anjos, adivinhasse o futuro, partilhasse os meus bens com os pobres, e entregasse o corpo às chamas, mas não tivesse a caridade, tudo isso de nada valeria" (1Cor 13,13). O glorioso apóstolo faz ver que os gestos finitos são insuficientes para punir ou satisfazer, sem a força da caridade.

2.2 - A culpa é reparada pelo amor
   
   Filha, fiz-te ver que a culpa não é reparada neste mundo pelos sofrimentos, suportados unicamente como sofrimentos, mas sim pelos sofrimentos aceitos com amor, com desejo ² , com interna contrição Não basta a força da mortificação; ocorre o anseio da alma. O mesmo acontece, aliás, com a caridade e qualquer outra virtude, que somente possuem valor e produzem a vida em meu Filho Jesus Cristo crucificado, isto é, na medida em que a pessoa dele recebe o amor e virtuosamente segue suas pegadas. Somente assim adquirem valor. As mortificações satisfazem pela culpa na feliz comunhão do amor, adquirido na contemplação da minha bondade. Satisfazem graças à dor e à contrição quando praticadas no autoconhecimento e na consciência das culpas pessoais. Esse conhecimento de si gera desprezo pelo mal, pela sensualidade ³, induz o homem a julgar-se merecedor de castigos e indigno de recompensa. Assim - acrescentava a doce Verdade _ é pela contrição interior, pelo amor paciente e pela humildade, considerando-se merecedora de castigos e não de prêmio, que a pessoa oferece reparação.

² - O desejo santo da glória divina e da salvação dos homens.
³ - A palavra sensualidade, no pensamento de Catarina, não inclui a conotação própria de lubricidade, própria do termo em português. Quer apenas indicar a sensibilidade humana, carregada de tendências para o mal, por efeito do pecado original.


2.3 - O caminho da Verdade

   Tu me pedes sofrimentos como reparação das ofensas cometidas contra mim pelos homens; desejas conhecer-me e amar-me como suma Verdade. O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência do meu ser - Vida eterna que sou - é este: nunca abandones o autoconhecimento! Ao desceres para o vale da humildade, reconhecer-me-ás em ti, e de tal conhecimento receberás tudo aquilo de que necessitas. Nenhuma virtude tem valor sem a caridade, no entanto é a humildade que forma e nutre a caridade. Conhecendo-te, tu te humilharás ao perceber que, por ti mesma, nada és. Verás que o teu ser procede de mim, que vos amei, a ti e aos outros, antes de virdes à existência. Além disso, quando quis recriar-vos na graça com inefável amor, eu vos lavei e vos concedi uma vida nova no sangue de meu Filho unigênito; naquele sangue derramado num grande incêndio de amor. Para quem destrói em si o egoísmo, é no autoconhecimento que tal sangue manifesta a Verdade. Não existe outro meio. Por meio dele, o homem em inexprimível amor conhece-me e sofre. Não com um sofrimento angustiante, aflitivo e árido, mas com uma dor que alimenta interiormente. Ao conhecer a Verdade, a alma sofrerá terrivelmente, pois toma consciência dos próprios pecados e vê a cega ingratidão humana. Nenhuma dor sofreria, se não amasse 4.
4 - Este parágrafo resume a doutrina catariniana da cela interior, isto é, do autoconhecimento em Deus.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O DIÁLOGO–Introdução


I - INTRODUÇÃO

1.1 - É pelo amor que o homem se une a Deus.

   Estava certa pessoa arrebatada em grandíssimo desejo da glória divina e da salvação dos homens...Exercitara-se durante algum tempo na prática da virtude, vivendo habitualmente na cela do autoconhecimento para melhor conhecer a Deus presente em si mesma. Quem ama procura seguir a Verdade e revestir-se dela. Não existe, porém, melhor modo de saborear a Verdade e de ser por ela iluminado, que a oração humilde e contínua, baseada no conhecimento de si e de Deus. Tal oração une o homem a Deus nas pegadas de Cristo crucificado; identifica-o com ele no desejo, na afeição, na união amorosa. Jesus parece afirmar tudo isso quando diz: "Quem ama guarda as minhas palavras e eu me manifestarei a ele; será uma só coisa comigo e eu com ele (Jo 14,21; 17,21). Em outras passagens bíblicas, ainda, encontramos expressões semelhantes, que revelam ser verdade o seguinte: pelo amor, o homem torna-se um outro Cristo!

   Para explicar-me melhor, recordo de ter ouvido de uma serva de Deus que, estando em oração, o Senhor não lhe ocultou seu amor pelos seus servidores, mas lho revelou dizendo entre outras coisas: "Usa a tua fé e fixa o pensamento em mim; verás a dignidade e a beleza do homem! Mas além da beleza que lhe provém da criação, presta atenção nestes que estão revestidos com a roupa nupcial da caridade, adornados com tantas e tão belas virtudes. Eles se acham unidos a mim pelo amor. Se me perguntares quem são - assim continuava o doce e amoroso Verbo - direi que são outro eu. Eles destruíram a vontade própria, revestiram-se da minha vontade, uniram-se a ela, a ela se conformaram". Realmente, é pelo amor que o homem se une a Deus.

1.2 - As quatro petições

   Desejando conhecer e seguir mais virilmente a Verdade, aquela serva elevou a Deus o seu anseio: primeiramente por si mesma, convencida de que ninguém pode ser de fato, útil aos demais através do ensino, do exemplo e da oração, se não cuidar de si pela aquisição das virtudes. Ela fez quatro petições ao Pai eterno: a primeira por si mesma; a segunda, pela reforma da santa Igreja; a terceira, de caráter geral, pelo mundo todo, sobretudo em favor da pacificação dos cristãos rebeldes que tanto pecam e prejudicam a santa Igreja; na quarta, rogava à Providência divina que cuidasse de todos, sobretudo de um caso particular.

1.3 - Catarina se oferece como vítima

   O ardor era grande, contínuo. E aumentou ainda mais quando a Verdade Primeira lhe revelou as necessidades do mundo, mostrando-lhe a sua confusão e pecados. Também uma carta do diretor espiritual ¹ falava de sofrimentos e dor intoleráveis, por causa das ofensas cometidas contra Deus, da condenação eterna de muitos e da perseguição contra a santa Igreja. Tudo isso lhe acendia a chama do desejo santo, num misto de tristeza pelos pecados e de alegria pela esperança de que Deus haveria de dar solução a tantos males.

   Como considerasse a eucaristia como o meio mais apto para a união do homem com Deus e maior conhecimento da Verdade - pois na comunhão o homem se acha em Deus e Deus no homem, como peixe no mar e o mar no peixe - aquela serva ansiava pela aurora a fim de ir à missa. Era um sábado, o dia de Maria. Amanheceu. Na hora da missa, sentiu um desejo imenso. Com profundo conhecimento de si, envergonhava-se da própria imperfeição. Parecia-lhe ser a causa de todos os males do mundo. Por essa razão odiava-se com santa justiça, desprezava-se. Esse conhecimento, ódio, justiça, purificaram-na dos pecados que julgava ter, e que de fato lhe estavam na alma.

   Dizia: "Ó eterno Pai, dirijo-me a ti para que castigues meus defeitos neste mundo. E porque, pelas minhas faltas, sou a responsável dos sofrimentos que meu próximo padece, rogo-te que bondosamente te desagraves em mim.

¹ O diretor de que fala o texto é o beato Raimundo de Cápua, religioso dominicano.

 

domingo, 15 de setembro de 2013

As Sete Dores de Nossa Senhora


AS SETE DORES DE NOSSA SENHORA


15 DE SETEMBRO

 
“Compaixão” de Nossa Senhora. Mãe e Filho unem-se num só coração para nos salvar.
 
 



A festa das Sete Dores de Nossa Senhora nasceu da piedade cristã, que se compraz em associar a Virgem Maria à paixão de seu Filho. Já no século XI as dores da Virgem Santa eram objeto de devoção particular. No século XIV apareceu o comovente Sabat Mater que uma tradição, aliás contestada, atribui ao bem-aventurado Jacopone da Todi. Celebrada com grande solenidade pelos Servitas no século XVII, a festa das Sete Dores da Virgem foi estendida por Pio VII a toda a Igreja, em 1814, a fim de lembrar os sofrimentos que ela acabava de atravessar na pessoa de seu chefe, primeiro exilado e cativo, depois solto graças à proteção da Virgem. Pio X, em 1912, fixou-a em 15 de setembro, oitava da Natividade. A Igreja, ao mesmo tempo que sublinha os sofrimentos de Maria, insiste igualmente no corajoso amor que a levou a tomar parte tão íntima na obra da nossa redenção. Ela é verdadeiramente aquela que, à semelhança de Judite perante a tribulação de seu povo, nada deixou de fazer para nos salvar da ruína. Oferecendo seu Filho por nós, tornou-se nossa Mãe e nós tornamo-nos seus filhos.

Fonte: Missal Romano Quotidiano. Dom Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de Santo André.

sábado, 14 de setembro de 2013

Exaltação da Santa Cruz


EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

14 de Setembro

 

Salve Santa Cruz, vitoriosa da serpente infernal, tu, que entre céu e terra elevaste Jesus, nova serpente de bronze, fonte de vida para quem contempla com amor confiante.



 

A festa de 14 de setembro teve primeiramente por único objeto o aniversário da descoberta da Santa Cruz por Santa Helena e a dedicação das basílicas constantinianas, consagradas em Jerusalém a 14 de setembro de 335, no próprio local do Santo Sepulcro e do Calvário. Mais tarde, porém, uma confusão de datas fez passar para 14 de setembro a memória de outro acontecimento que suplantou o primeiro: a restituição da Santa Cruz pelos persas em 629. Levada de Jerusalém, quinze anos antes, após uma vitória dos persas, foi reconduzida para Jerusalém pelo imperador Heráclio, vencedor por sua vez dos exércitos persas.

A liturgia da Santa Cruz é uma liturgia triunfante: a Igreja celebra nela a vitória de Cristo sobre a morte e o glorioso troféu da nossa redenção. Já a serpente de bronze erguida por Moisés sobre o povo, o anunciava: a salvação nos havia de vir da exaltação de Jesus sobre o madeiro da Cruz.
 
Fonte: Missal Romano Quotidiano.  Dom Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de Santo André.
 
 
 

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Santíssimo Nome de Maria

SANTÍSSIMO NOME DE MARIA

12 DE SETEMBRO

 


"Os espíritos malignos tremem ante a Rainha dos Céus, e fogem como se corre do fogo, ao ouvir seu santo Nome. Causa-lhes pavor o santo e terrível Nome de Maria, que para o cristão é em extremo amável e constantemente celebrado. Não podem os demônios comparecer nem poder por em jogo suas artimanhas onde veem resplandecer o nome de Maria. Como trovão que ressoa no céu, assim caem derrubados ao ouvirem o nome de Santa Maria. E quanto mais amiúde se profere este nome, e mais fervorosamente se invoca, mais céleres e para mais longe escapam." (Tomás de Kempis)

 

"Se existe entre os mortais algum nome tão belo, cheio de graça, que mereça ser escrito, lido, louvado, pintado e esculpido é o de Maria, já que é digno de estar sempre diante dos olhos, nos ouvidos e nas mentes de todos os homens e de ser pronunciado em particular e publicamente com imensa reverência". (São Pedro Canísio)

 

Conforme se praticava entre os judeus, oito dias depoisdo nascimento da Virgem, os pais deram-lhe um nome. A Igreja que instituiu a festa do Santo Nome de Jesus, alguns dias depois do Natal, quis instituir também a festa do Santo Nome de Maria pouco depois da sua Natividade. Celebrada primeiramente em Espanha, esta foi estendida a toda a Igreja por Inocêncio XI em 1683, para agradecer a Maria a vitória que João Sobieski, rei da Polônia, acabava de alcançar sobre os turcos que assediavam Viena e ameaçavam o Ocidente.

O nome hebreu de Maria, em latim Domina, significa Senhora ou Soberana; e ela é-o com efeito, pela autoridade mesma de seu Filho, o Senhor Soberano do mundo. Gostamos de chamar a Maria, Nossa Senhora, como chamamos Nosso Senhor a Jesus; pronunciar o seu nome é afirmar o seu poder, implorar o seu auxílio e colocar-nos sob a sua benfazeja proteção.

Fonte: Missal Romano Cotidiano. Dom Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de Santo André.

 

Ave Maria em aramaico.

Slom-lek Mar-yam (Ave Maria )
Mal-yat-tay-boo-too (cheia de graça)
Mo-Ran a-mék (O senhor é convosco )
Mba-rak-to At-bné-sé (Bendita sois vós entre as mulheres)
Wam-ba-ra-koo Fee-ro-dkar-sek Ye- Soo. (e bendito é o fruto do vosso ventre,
Jesus)
 
 Mort-Maryam (Santa Maria)
É-méh da-lo-ho
(Mãe de Deus)
Et-ka saf-hlo-fayn ( Rogai por nós)
Hnan- ha-to-yé (Pecadores)
Ho-so-wab so-to ( Agora e na hora)
Dman- Tan
(de nossa morte)
A-meen
(Amém)
 

 

Ave Maria em latim

Ave Maria, (Ave Maria)
gratia plena, (cheia de graça)
Dominus tecum. (o Senhor é convosco)
 Benedicta tu in mulieribus, (Bendita sois vós entre as mulheres)
et benedictus fructus ventris tui, Iesus. (e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus)
Sancta Maria, (Santa Maria)
Mater Dei, (Mãe de Deus)
ora pro nobis peccatoribus, (rogai por nós pecadores)
nunc, et in hora mortis nostræ. (agora, e na hora de nossa morte)
Amen. (Amém)


 
Oração para invocar sempre o nome de Maria Santíssima


Grande Mãe de Deus e minha Mãe, ó Maria, é verdade que eu não sou digno de proferir o vosso nome; mas vós, que me tendes amor e desejais minha salvação, concedei-me, apesar de minha indignidade, a graça de invocar sempre em meu socorro vosso amantíssimo e poderosíssimo nome. Pois é ele o auxílio de quem vive e salvação de quem morre.

Puríssima e dulcíssima Virgem Maria, fazei que seja vosso nome de hoje em diante o alento de minha vida. Senhora, não tardeis a socorrer-me quando vos invocar. Pois, em todas as tentações que me assaltarem, em todas as necessidades que me ocorrerem, não quero deixar de chamar-vos em meu socorro, repetindo sempre:

Maria! Maria! Assim espero fazer durante a vida, assim espero fazer particularmente na hora da morte, para ir depois louvar eternamente no céu vosso querido nome, ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria.

Extraído do livro: “Glórias de Maria”. De Santo Afonso Maria de Ligório.

 

domingo, 25 de agosto de 2013

Papolatria.


Papolatria

Marco Bongi



Com o termo "papolatria" deliberadamente exagerado para evidenciar claramente as distorções, eu não quero absolutamente pôr em causa o sentido de respeito, a justa reverência, a docilidade ao Magistério e nem mesmo a obediência devida ao Santo Padre quando exerce, em matéria de fé e moral, seu ensino supremo. Nem se quer ignorar ou diminuir o Primado de jurisdição ou o poder de governo direto sobre a Igreja, que a doutrina da Igreja Católica sempre reconheceu ao Sumo Pontífice.

Antes, eu estou me referindo, e espero que os críticos vão me desculpar, a uma generalizada postura psicológica, muito em voga no mundo católico, tanto entre o clero como entre os chamados "leigos engajados", o que leva, seja como for, sempre a louvar, além de todos os limites da decência intelectual, qualquer ato, conduta ou estilo de ação do Papa, apresentando-os invariavelmente, como o melhor possível, o mais justo em absoluto, o mais correto, a mais acertada solução possível para com a situação daquele momento.

Quem não se deparou com comentários do tipo:

 " Realmente comoventes e significativas as palavras da primeira saudação do Papa Francisco do balcão da bênção na noite de sua eleição: Boa noite ..." ou, para não inferir apenas sobre o Pontífice reinante, como avaliar os elogios excessivos, escritos e pronunciados muitas vezes pelos mesmos observadores, que julgaram da mesma forma como "heroico", "corajoso" e "um sinal de profunda fé no Onipotente", seja a escolha de João Paulo II de resistir até a morte na Cátedra de Pedro e a atitude diametralmente oposta de Bento XVI de apresentar a sua demissão?

Tinham passado, afinal, apenas oito anos, difícil portanto, invocar a mudança no contexto histórico.

Confrontados com contradições como essas, os interlocutores ficam muitas vezes desconfortáveis, mas não se desarmam. Eles invocam a diferença no contexto histórico, a diversidade de vocações e, sobretudo, mais e mais frequentemente, o argumento de sabor claramente relativista, que inevitavelmente leva a definir bom e justo, na mesma medida, também posturas claramente opostas e antitéticas.

Bento XVI exigia que os comungantes recebessem a Eucaristia ajoelhados. Papa Francisco nem sequer se ajoelha na consagração ... Será? O que há de errado? São excelentes ambos os comportamentos ... Enfatizam apenas dois aspectos complementares da mesma verdade!

João Paulo II organizava viagens espetaculares e grandiosas sem poupar nenhuma despesa. Papa Francisco traz sua mala no avião ostentando uma pobreza que toca o pauperismo ... São apenas dois modos "aparentemente" diversos de viver o Cristianismo ... Cada um tem sua própria personalidade e Deus certamente, queria deles o que, naquele momento, eles fizeram.

Mas, podemos continuar: Bento XVI gostava tanto da música de Mozart ... A tocava sempre com o piano instalado no apartamento pontifício ... Ele ficava contente de assistir alguns concertos de música clássica.

Papa Francisco não só tem, de forma clamorosamente dramática, “dado o pacote" para aqueles que haviam organizado um concerto em sua homenagem, mas parece mesmo que se justifica dizendo desdenhosamente, não se sentir como um príncipe da Renascença.

E que fazem os nossos comentaristas? Há dois anos nos davam a seguir, com a exaltação da "profunda sensibilidade" do sucessor de Pedro, a sensibilidade que se manifesta poderosamente em amor pela música. Hoje, os mesmos personagens, têm prazer no sentido prático expresso pelo bispo de Roma, que o levou a desprezar ornamentos inúteis e cerimoniais anacrônicos.  

Compreendamos bem. Papas sempre diferiam muito um do outro, pelo caráter, personalidade e estilo de vida. O asceta Celestino V levou uma vida diametralmente oposta ao decidido Bonifácio VIII. O tímido Clemente XIV não se assemelha em nada ao valente Gregório VII. E o que dizer do mundano Alexander VI em relação ao piíssimo São Pio V?

Não é certamente este o problema. A questão está em bem outros termos.

Ninguém pode me acusar de não sentir "cum Ecclesia" se eu dissesse, por exemplo, que Calisto III  provavelmente foi um simoníaco; que Alexandre VI levava uma vida amoral; que Clemente XIV  se mostrou fraco quando dissolveu a ordem dos jesuítas, que os papas de Avignon eram propensos aos desejos do rei de França; que Urbano VIII estava errado, na verdade eu não o penso, em condenar Galileu Galilei. Alguma crítica, no entanto, é possível formulá-la, sem correr o risco de "excomunhão", até, e absolutamente não depois, de Pio XII. De 1958 para a frente, em vez ... ai de quem ousasse ventilar, ainda que timidamente, até mesmo uma pequena reserva sobre os Papas sucessivos!

Todos perfeitos, todos os insuperáveis, todos os santos! Dentro de alguns séculos certamente muitos rirão de nosso conformismo oblíquo e acrítico.

Será bajulação? Será só pouca vontade de se envolver? Será, especialmente para jornalistas e escritores que ... "Tenho família ..."?

Em conclusão, podemos de qualquer modo serenamente afirmar que este nivelamento intelectual não tem nada de autenticamente católico. Uma coisa é o respeito às doutrinas proclamadas e ao Magistério constante do Romano Pontífice; uma coisa é a obediência aos comandos dados, a fim de defender e transmitir o Depósito da Fé.

Bem outra o servilismo obtuso, a adulação descarada, a exaltação incondicional.

Além disso, na minha opinião, essas atitudes intelectuais, além de que fazem perder autoridade a quem as propõe, acabam também por levar, mais cedo ou mais tarde, à ladeira que leva ao indiferentismo. Quando, de fato, o valor de uma declaração ou comportamento depende, em última instância, não do conteúdo intrínseco dos mesmos, mas da pessoa que os faz, se arrisca de não ser capaz de distinguir o que é verdadeiramente justo e verdadeiro do que é errado e, portanto, falso. 

O juízo não se baseia, de resto, em fatores objetivos, mas, essencialmente, sobre aspectos legais exclusivamente ou quase exclusivamente, à pessoa e ao papel que desempenha.

Felizmente, os grandes santos, eles sim, verdadeiramente católicos, nos ensinaram a fugir do "cristianismo de sacristia". São Paulo, Santo Atanásio e São Catarina de Siena amavam tanto o sucessor de Pedro que, por amor e autêntica caridade para com ele, não lhe negaram  também advertências e repreensões. 
 

sábado, 24 de agosto de 2013

Carta do Pe. Cacqueray sobre a Declaração dos bispos da Fraternidade.

Carta do Pe. Cacqueray sobre a Declaração dos bispos da Fraternidade.

 
     Apresentamos aos leitores de língua portuguesa a tradução da carta que o Superior do Distrito da França, Pe. Régis de Cacqueray, enviou aos sacerdotes de seu Distrito com esclarecimentos úteis sobre a Declaração dos Bispos da Fraternidade por ocasião do 25º aniversário das sagrações episcopais. A referida carta se encontra disponível publicamente no site do Distrito da França (http://www.laportelatine.org/vatican/sanctions_indults_discussions/27_juin_2013/02_07_2013_cacqueray_au_sujet_de_la_declaration_du_27_juin_2013.php), e esperamos que possa igualmente ser de utilidade aos católicos da Tradição em nosso país.



     Caro padre,
     A Declaração Doutrinal dos Bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, de 27 de junho de 2013, exprime com clareza e força o combate pela Fé que ela deve empreender nas circunstâncias da crise na Igreja, época que lhe toca viver.
     A verdade católica e a denúncia das heresias e da perversão do espírito deste tempo de apostasia se acham expressas na mencionada Declaração. É preciso rezar para que essa Declaração ajude as autoridades da Igreja a se darem conta finalmente da dissolução cada vez mais grave da Fé católica para a qual os erros do Concílio Vaticano II as conduzem. É necessário ter esperança de que, igualmente, essa Fé consolará os nossos fieis e de que os confortará no seu apego àquela única Verdade católica.
     Depois de ter retirado a Declaração doutrinal de 15 de abril de 2012 e depois de ter retomado posições da Fraternidade na última Carta aos Amigos e benfeitores, nosso Superior geral nos comunicou agora essa Declaração de 27 de junho de 2013. Agradeçamos-lhe vivamente! Dada na ocasião dos 25 anos das sagrações episcopais de 1988 e na sequência das discussões doutrinárias com a Santa Sé, reveste-se de importância histórica ao reafirmar a natureza do combate a ser travado.
     Sejam quais foram as dificuldades desses últimos dois anos, constatamos nesse texto que as posições da Fraternidade estão claramente expressas.
     Todavia, como o parágrafo nº 11 da dita Declaração provocou certas interrogações, aproveito a ocasião para trazer algumas precisões. Esse parágrafo se contenta em expor duas evoluções possíveis das autoridades romanas. A primeira é a de que essas autoridades retornem imediatamente à Tradição e à Fé de sempre. A segunda conjectura uma fase intermédia, em que Roma reconheceria à Fraternidade o direito de professar integralmente a Fé e de rejeitar os erros que lhe são contrários, também com o direito e o dever, reconhecidos à Fraternidade, de se opor publicamente aos erros e aos fautores de erros, sejam quem for.
     É importante notar que não está dito de jeito nenhum que, nesse segundo caso – fortemente hipotético aliás – que a Fraternidade aceitaria ipso facto, então, o seu reconhecimento canônico. As circunstâncias serão minuciosamente estudadas para ver o que é prudente fazer ou não fazer para contribuir ao bem comum da Igreja Católica.
     Além disso, de jeito nenhum a Declaração de 27 de junho de 2013 faz um pedido de poder se opor aos erros e aos fautores de erros; pela bela razão de que a Fraternidade não tem de maneira nenhuma a necessidade da autorização romana para proceder como tem procedido até aqui. Ela somente espera, simplesmente, que Roma um dia lhe reconhecerá o direito; mas esse direito, ela sabe muito bem que já possui. Espera inclusive que Roma lhe imporá isso como um dever; mas esse dever ela também já sabe que lhe incumbe hoje.
     Enfim, depois de haver eu mesmo indagado nossos superiores, ouvi deles a resposta de que essa segunda hipótese suporia um papa que não seria mais modernista, um papa que estaria desiludido dos erros liberais e modernistas, mas que se encontraria muito fraco e isolado. Eis qual é o papa que poderia nos reconhecer explicitamente o direito e o dever de nos opormos publicamente aos erros e aos fautores de erros, sem que fosse ainda questão de reconhecimento canônico.
     O texto da Declaração não responde, aliás, a essa dúvida? Creio que sim. Pois pareceria contraditório que um papa modernista e liberal desse à Fraternidade o direito, e inclusive o dever, de se opor publicamente aos erros e aos fautores de erros (isto é, a ele mesmo, que continuaria prisioneiro desses erros).
     Tomemos um exemplo do mundo dos negócios. No Direito do Trabalho, fala-se de “falta grave” quando um empregado comete um ato particularmente grave, dirigido contra o bem comum da empresa. Essa falta particularmente grave deve ser imediatamente punida com uma demissão, na espera de um acerto de contas. Não se concebe evidentemente que um presidente de uma empresa dê a um de seus empregados o direito e o dever de cometer “faltas graves” contra o seu negócio!
     É exatamente isso o que faria um papa liberal ou modernista se ele reconhecesse à Fraternidade o direito e mesmo o dever de atacar os erros e os fautores de erros dentro da Igreja. Isso significaria que nos reconheceria o direito e o dever de cometer faltas graves, não contra a Igreja, o que é absolutamente óbvio, mas contra a igreja conciliar e contra a pessoa dele mesmo. Na verdade, um papa assim, a menos que tivesse enlouquecido, teria se convertido, para favorecer de tal maneira os ataques contra essa igreja conciliar.
     Claro está que nós podemos sempre nos perguntar se isso não poderia também dissimular uma tática modernista ou se esse papa não estaria querendo dizer com os vocábulos “liberalismo” e “modernismo” outra coisa diferente do que realmente significam essas palavras. Tudo é possível e tudo devia ser sopesado atentamente se a hipótese se apresentar. Mas, é justamente por esse motivo que a Declaração NÃO diz que a consequência seria a nossa aceitação de um reconhecimento canônico.
     Seria verdadeiramente paradoxal e uma obra diabólica desejar abandonar a Fraternidade quando uma Declaração como essa acaba de ser publicada. É sob o comando de nosso Superior geral, e não como franco-atiradores, que devemos continuar a travar o combate pela Fé.
     Combatamos, pois, firmemente, com todo nosso coração, apoiando-nos particularmente sobre essa Declaração. Combatamos, com inteligência e prudência, com espírito sobrenatural e na obediência a nossos Superiores. Combatamos pela glória de Deus e pela salvação das almas que nos estão confiadas.
     Combatamos sem zelo amargo, sem preguiça e sem amargura. Se acontecer que pensemos que nossos Superiores não se portam como devem no combate, não hesitemos em nos abrir a eles; mas não murmuremos entre nós.
     Do momento em que o estandarte da Fé está valorosamente desfraldado contra as heresias e contra a loucura do mundo moderno, saibamos passar por cima de tudo aquilo que é acessório e acidental. Já temos muita sorte em sermos, nestes tempos de apostasia, membros desse exército de sacerdotes católicos que defendem a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se consideramos, talvez, termos sido vítimas de injustiças ou de incompreensões, ou se o somos de fato, peçamos a graça de saber disso nos regozijar e ofereçamos em sacrifício por esse grande combate por nossa Fé.
     Esperamos de todo o coração que essa Declaração doutrinal permitirá àqueles que não estão mais conosco – D. Williamsom, antigos membros da Fraternidade ou comunidades amigas – voltarem ao seu berço. Citamos especialmente o padre Olivier Rioult. Possa essa Declaração doutrinal de 27 de junho de 2013 ajudá-lo doravante a entender que suas conferências estão erradas ao denunciarem uma traição e um acordo da Fraternidade.
     Convidamos a cada um a permanecer firme na Fé e a não pensar que exista algo como “um estado de necessidade dentro do estado de necessidade” que dispensaria, de agora em diante, de pedir autorizações e que permitiria tomar uma iniciativa qualquer.
     A esse propósito, assinalo que o livro composto pelo padre Pivert não teve a sua difusão proibida pela Casa Geral da Fraternidade. É um boato sem fundamento veiculado pelo site de Max Barret, que afirmou que eu teria permitido que se vendesse contra a ordem de nossos superiores. A realidade é que nossos Superiores não me pediram para retirar esse livro de circulação. Eu pedi ao senhor Barret para corrigir essa inexatidão.
     Enfim, tive a alegria de lhes anunciar o lançamento do site vatican2enquestions, na segunda-feira, 1º de julho de 2013, neste vigésimo quinto aniversário, quase no mesmo dia do aniversário das Sagrações de 1988.
     Tive a ocasião, na última reunião com os priores em Flavigny, de explicar os motivos na origem dessa iniciativa. Esse site nos permitirá, em particular, mostrar que o essencial de tudo o que se diz e do que se faz pelos modernistas, em nome da Igreja, hoje em dia, encontra suas reais raízes no Concílio Vaticano II. Tive a alegria de poder mostrar nesta manhã esse novo site aberto aos nossos Bispos, Dom Fellay e Dom de Galarreta, que estavam de passagem em Suresnes.
     Eu lhe peço aceitar, caro sacerdote de nosso Distrito, a expressão de toda a minha esperança e de meu devotamento sacerdotal, no Coração doloroso e Imaculado de Maria.
     Suresnes, 02 de julho de 2013.
     Padré Régis de CACQUERAY, Superior do Distrito francês da FSSPX