segunda-feira, 25 de novembro de 2013

DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO

18.1 - Os degraus do amor

18.1.1 - O amor servil (1º estado)

   Então o bondoso Deus, para satisfazer o desejo daquela serva, dizia:
   - Considera estas pessoas, que abandonaram o pecado mortal por causa do temor servil; é necessário que passem ao amor virtuoso. O temor servil, sozinho, não basta para lhes dar a vida eterna.
   O medo constituía a lei antiga, que eu dei através de Moisés. Ela se baseava no temor, pois o castigo seguia imediatamente à culpa. A lei nova é a do amor e veio com meu Filho; fundamenta-se na caridade. A nova lei não cancelou a antiga, mas a aperfeiçoou; meu Filho o disse: "Não vim abolir a lei, mas cumpri-la" (Mt 5,17). Jesus fundiu a lei do temor com a lei do amor; eliminou o imperfeito medo de castigos e deu-lhe o temor santo, isto é, o medo de ofender-me. Assim, a lei imperfeita tornou-se perfeita lei do amor. Por sua vinda, meu Filho - qual carro de fogo - trouxe o fogo da caridade através da natureza humana e a misericórdia em abundância. Ele aboliu o castigo pelas faltas. Na lei mosaica, antigamente, havia a ordem de se punir imediatamente a culpa; hoje não é mais assim. A culpa não é mais castigada nesta vida. Agora ninguém mais deve ter temor servil, pois a culpa não é punida, mas deixa-se para depois, na vida futura, quando a alma estiver separada do corpo. Assim mesmo, só no caso de que o homem não se emende pela contrição perfeita. Enquanto viver (aqui), o homem estará no tempo do perdão; só depois de morto terá o tempo da justiça. É necessário, portanto, abandonar o temor servil e praticar o temor santo, o amor por mim. Em caso contrário, recai-se no rio do pecado por ocasião das adversidades ou das consolações. Estas últimas, se a pessoa a elas se apegar desordenadamente, tornam-se espinhos que ferem a alma.
   Afirmei antes (16.13) que é impossível sair do rio do pecado e subir à ponte, sem escalar os três degraus (comuns); de fato, uns o fazem imperfeitamente; outros, perfeitamente; outros, ainda, perfeitissimamente. As pessoas que agem por temor servil sobem os três degraus unificando imperfeitamente suas faculdades. Conscientizando-se do castigo que segue à culpa, (o pecador) com a memória lembra-se do pecado; pela inteligência considera as penas merecidas; e, na vontade, recusa o castigo. Supondo que ajam assim pela primeira vez, seria preciso que o fizessem debaixo da iluminação da fé, isto é, que não se limitassem apenas a pensar nos castigos, mas que considerassem também as virtudes e o amor que lhes dou. Agindo por esta última forma, escalarão (os degraus comuns) com amor, livres do temor servil.
   Necessita-se destruir o egoísmo, ser prudente, constante, perseverante. Infelizmente muitos iniciam a escalada com tamanha vagarosidade, amam-me com tal insegurança e negligência, que logo desanimam. Qualquer sopro de vento os faz parar ou retroceder. Tendo atingido o primeiro degrau do Crucificado imperfeitamente, não passam ao segundo, o do Coração.

18.1.2 - O amor interesseiro (2º estado)

   Alguns se tornam servidores fiéis, dedicando-se a mim, não por medo de castigo, mas por amor. Mas seu amor ainda é interesseiro: gostam de mim por vantagens pessoais, à procura das consolações que acham em mim. Trata-se de um amor imperfeito. Sabes quando se manifesta essa imperfeição? No momento em que tais pessoas se vêem privadas da consolação experimentada em mim. Do mesmo tipo é o amor que têm pelo próximo: um amor imperfeito, que não basta, que é passageiro, vai diminuindo e muitas vezes se extingue. Chega a desaparecer, quando retiro destas pessoas as satisfações espirituais e permito dificuldades e oposições, no intuito de provar-lhes a virtude. Minha intenção seria leva-las a um perfeito autoconhecimento, à consciência do próprio nada, a perceber a própria incapacidade frente à graça. Na realidade, no momento da provação, não me procuram, recusam-se a reconhecer-me como benfeitor, não procuram somente a mim com verdadeira humildade. Eis a razão por que concedo e depois retiro as consolações, deixando intacto o estado de graça.
   Mas diante disso, estas pessoas desanimam, impacientam-se. Algumas vezes abandonam seus exercícios espirituais; muitas outras, fingindo virtude, dizem a si mesmas: "Esta prática para nada serve" - só porque se vêm carentes de fervor espiritual. Agem imperfeitamente, como pessoa que ainda não se desprendeu totalmente do egoísmo que lhe venda os olhos da fé. Quem se livra do egoísmo entende que tudo procede de mim, que nenhuma folha da árvore cai sem a minha permissão (Mt 6,28) que tudo concedo ou permito a fim de santificar os homens, isto é, para que atinjam a finalidade para a qual os criei. Seria preciso que vissem e compreendessem o seguinte: nada mais desejo que o seu bem no sangue do meu Filho unigênito, com o qual foram purificados. Em tal sangue podem reconhecer meu plano, ou seja, que para dar-lhes a vida eterna eu os criei à minha imagem e semelhança e, depois, no sangue de Jesus, os recriei como filhos adotivos através da graça. Infelizmente, são imperfeitos e somente procuram seus interesses e deixam de amar os outros.
   Os primeiros (18.1.1) arrefecem por medo de sofrimentos; estes, os segundos, deixam de fazer bem aos outros e decaem no seu amor por ausência de interesses pessoais e consolação interior. O motivo é porque o homem, sem amor altruísta, ama a si mesmo segundo a imperfeição com que me ama, isto é, à procura de interesse próprio.
   Se tais pessoas não se derem conta de tal imperfeição, se não aspirarem ao amor perfeito, impossível será que não voltem atrás. Para quem deseja chegar à vida eterna, o altruísmo no amor é indispensável. Para se adquirir a vida interminável, não basta evitar o pecado por medo de castigos ou ser virtuoso por interesses; é mister evitar o pecado porque ele me ofende, e praticar a virtude porque ela é amor por mim.
   Quanto afirmado constitui a maneira geral da vocação ao amor. Começa-se pela imperfeição. Mas ocorre que haja passagem da imperfeição à perfeição (no amor): seja nesta vida, praticando a virtude com um coração desinteressado e liberal a meu respeito, seja mediante o reconhecimento da própria imperfeição na hora da morte, com o propósito - no caso de que continuasse a viver - de servir-me altruisticamente.
   Foi com semelhante amor, imperfeito, que (São) Pedro amou o doce e bondoso Jesus, gozando de sua afável companhia (durante a vida pública); mas quando chegou o tempo da dificuldade, ele esmoreceu, fugiu, renegou, por medo de sofrer. Os que vão por este caminho, do amor servil e interesseiro, caem em muitos inconvenientes. Seria preciso que se elevassem e se comportassem como filhos, servindo-me desinteressadamente. Todavia, eu remunero os homens por todo esforço e dou a cada um de acordo com seu estado (espiritual) e boa vontade.

18.1.3 - O amor amizade (3º estado)

   Os que perseveram na oração e nas boas obras, os que na constância progridem na virtude, estes atingirão o amor-amizade. A estes, eu amarei como amigos, pois correspondo com igual afeição. Quem me quer bem como faz um servo com seu patrão, será amado por mim, o Senhor, na mesma medida; mas não me manifestarei a ele. Os segredos são revelados aos amigos íntimos somente! Sem dúvida alguma, um servo - graças às suas capacidades e afeição - pode progredir e tornar-se amigo caríssimo. E é justamente o que ocorre com estas pessoas. Enquanto permanecem no amor interesseiro, não me manifesto a eles; mas se reconhecem sua imperfeição, procuram as virtudes, destroem a raiz do egoísmo espiritual, renunciam aos sentimentos internos do temor servil e do amor interesseiro através da fé, então sim, serão do meu agrado e chegarão ao amor de amizade. Manifestar-me-ei a eles. Dizia Jesus: "Quem me amar, será um comigo; revelar-me-ei a ele e moraremos juntos" (Jo 14,21.23). A amizade íntima consiste nisto: que são dois corpos, mas uma só alma no amor, pois o amor transforma (o amante) na coisa amada. E quando (os amigos) se tornam uma só alma, entre eles já não haverá segredos. Por isso dizia meu Filho: "Virei e moraremos juntos".
   Sabes como é que me manifesto à pessoa que realmente me ama conforme o ensinamento de Cristo? Nela eu revelo meu poder de muitos modos, de acordo com seus desejos. São três as modalidades principais: 1) manifesto minha afeição e caridade por meio do Verbo encarnado, cuja caridade se revelou através do sangue derramado num incêndio de amor. Esta minha manifestação é dupla: de modo geral, naqueles que se encontram na "caridade comum", levando-os a reconhecer meu amor em numerosos favores; e de modo especial, naqueles que se tornaram meus amigos; estes últimos, com acréscimo aos sentimentos íntimos com que saboreiam, conhecem, experimentam e sentem na caridade comum. 2) manifesto minha caridade através das próprias pessoas. Não faço acepção de pessoas, mas olho o desejo santo de cada uma e manifesto-me em conformidade com a perfeição com que a pessoa me procura. Às vezes - e trata-se ainda desta segunda modalidade - concedo o espírito de profecia, com a revelação de acontecimentos futuros. Isso acontece de muitas maneiras, segundo as necessidades que vejo na própria pessoa ou na sociedade. 3) de muitos modos, segundo as aspirações e desejos da pessoa, faço estar presente no seu espírito o meu Filho unigênito: às vezes, quando procura conhecer meu poder durante a oração e eu atendo, revelando minha força; outras vezes, ao querer a sabedoria do Filho, e eu o ponho como objeto de seus conhecimentos; por fim, ao desejar-me na clemência do Espírito Santo, e isto me possibilita revelar meu amor levando a alma à prática do bem, com grande caridade pelo próximo.
   Como vês, meu Filho dizia uma verdade, quando afirmava: "Quem me ama será um comigo". Ao viver sua mensagem, estais unidos a ele e a mim, pois eu e ele somos um. Nele, manifesto-me. Se ele dizia: "Eu manifestar-me-ei a vós", falava com exatidão. Ao se revelar, revela-me.
   Qual seria o motivo por que não disse: "Eu revelar-vos-ei meu Pai? A razão principal é tríplice: Em primeiro lugar quis dizer que eu e ele não somos separados um do outro. Quando o apóstolo Filipe lhe pediu: "Mostra-nos o Pai e isto nos basta" (Jo 14,8), respondeu: "Quem me vê, vê o Pai" (Jo 14,9). Disse assim porque é um comigo. O que ele é, recebeu de mim. Em tal sentido, ensinava aos judeus: "Minha doutrina não é minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 7,17). É que o Filho procede de mim; não o contrário! Sou um com ele e ele comigo. Por isso não falou: "Manifestarei o Pai", mas "eu manifestar-me-ei". Em segundo lugar, porque ao manifestar-se a vós nada mais fazia do que mostrar quanto recebera de mim, como que dizendo: "O Pai se manifestou em mim porque sou um com ele; por meio de mim, nós dois nos revelamos". Em terceiro lugar porque, sendo eu invisível, não posso ser visto por vós neste mundo. Quando vossa alma se separar do corpo, espiritualmente vereis a mim e ao Verbo até a ressurreição final. Já o disse ao tratar da ressurreição (14.7). Tal qual sou, nãopodeis ver-me. Para vos ajudar, escondi a divindade sob o véu na natureza humana em Cristo. Invisível, tornei-me como que acessível aos vossos olhos. Cristo me manifesta. Por isto não dizia: "Eu manifestarei o Pai", mas: "Eu manifestar-me-ei a vós", como que para significar: "Eu manifesto-me a vós de acordo com quanto o Pai me deu". Como percebes, meu Filho se manifesta ao me revelar. Não dizia: "Eu vos manifestarei o Pai", porque vós, no corpo mortal, não sois capazes de ver-me; além disso, porque ele e eu somos uma só coisa.

VISÃO DE CATARINA SOBRE A HUMANIDADE PEREGRINA

17 . VISÃO DE CATARINA SOBRE A HUMANIDADE PERREGRINA

   Então aquela serva, inflamada de desejo santo, contemplou a si mesma no espelho da divindade e viu a humanidade que caminhava de vários modos e com diversificados interesses na procura do próprio fim. Uns homens, estimulados pelo medo dos castigos (eternos) começavam a subir (do rio para a ponte-Cristo); numerosos atingiam o segundo degrau, após terem atendido ao primeiro apelo de Deus; pouquíssimos iam com grandíssima perfeição.

sábado, 16 de novembro de 2013

DEUS PAI FALA SOBRE A FUNÇÃO DAS FACULDADES NA VIDA ESPIRITUAL

16 . DEUS PAI FALA SOBRE A FUNÇÃO DAS FACULDADES NA VIDA ESPIRITUAL

16.1 - As faculdades como degraus comuns

   Então Deus Pai, cheio de bondade, olhou para o desejo santo e a fome daquela serva e lhe disse:
   - Filha querida, não desprezo os santos desejos dos homens; gosto até de realiza-los. Vou mostrar e explicar quanto pedes. Queres que eu te fale detalhadamente sobre os três degraus e diga-te como hão de agir os pecadores para abandonar o rio do pecado e atingir a ponte. Já me ocupei deste assunto antes quando falei da ilusão e cegueira dos maus, esses "mártires" do demônio que vivem na certeza do inferno. Mostrei que recompensa recebem por suas más ações (14.5) e fiz ver como deveriam comportar-se (14.14). Todavia, para atender ao teu pedido, vou dar maiores explicações.
   Já sabes que todos os males procedem do egoísmo (2.7); é ele que obscurece a razão, na qual se encontra a iluminação da fé. Quem perde uma dessas duas luzes, perde ambas. Ao criar o homem à minha imagem e semelhança, dei-lhe a memória, a inteligência e a vontade. Entre elas, a mais nobre é a inteligência. Embora seja movida pela vontade, é a inteligência que alimenta a vontade. Por sua vez, a vontade fornece à memória a recordação de mim e de meus favores. Essa recordação dará à pessoa solicitude e gratidão. Como vês, uma faculdade reabastece a outra, nutrindo o homem na vida da graça.
   Não vive o homem sem amor; ele sempre procura algo para amar. Criei por amor, criei-o no amor. Assim, a vontade move a inteligência, quase dizendo-lhe: "Quero amar; o amor é meu sustento". Desperta-se então a inteligência e responde: " Se queres amar, vou dar-te o bem para que o ames"! Reflete ela sobre a dignidade humana e sobre a indignidade proveniente do pecado. Na dignidade enxerga a bondade e o amor com que criei o homem; na indignidade percebe a misericórdia, graças à qual dou-lhe o tempo (de arrepender-se) e o liberto do mal. Diante dessas realidades, a vontade se alimenta de amor: sente o desejo santo, despreza a sensualidade, torna-se humilde e paciente, concebe interiormente as virtudes, pratica-as mais ou menos perfeitamente no próximo, de acordo com a perfeição atingida. Mas disso falarei depois (18).
      Em sentido inverso, se o apetite sensível procura os bens materiais, a eles orienta-se a inteligência; e quando a mesma toma como objeto os bens passageiros, surgem o egoísmo, o desprezo pelas virtudes, o apego ao vício e, como consequência, o orgulho e a impaciência. Por sua vez, a memória encher-se-á com tais elementos, fornecidos pelo afeto sensual, obscurecendo-se a inteligência, que não mais vê senão aparências de bem. Tais aparências ficam sendo, então, a única claridade mediante a qual a inteligência olha e a vontade ama todo objeto de prazer. Sem estas aparências, o homem não pecaria, pois, como tendência inata, ele só pode desejar o bem. Peca, porque o mal toma colorações de bem. A inteligência não mais discerne ou reconhece a Verdade; por cegueira, engana-se e procura o bem e a satisfação onde eles não estão. Já afirmei antes (14.11) que os prazeres mundanos são espinhos venenosos; engana-se a inteligência ao considerá-los, a vontade ao amá-los, a memória ao retê-los. Comporta-se a inteligência como uma ladra, apoderando-se do alheio; igualmente a memória, conservando a contínua lembrança de realidades distantes de mim. Com tudo isso, a alma se priva da minha graça.
   É muito estreita a união destas três faculdades. Quando uma delas me ofende, as outras também o fazem. Como disse (16.1), uma apresenta à outra o bem ou o mal, conforme agrada ao livre arbítrio. Este se acha na vontade e a move como quer, em conformidade ou não com a razão. Possuís a razão - sempre unida a mim, a menos que o livre arbítrio a afaste mediante um amor desordenado - e tendes em vós uma lei perversa, que luta contra o espírito. Tendes, então, duas partes em vós mesmos: A sensualidade 62 e a razão. A sensualidade foi dada ao homem como servidora, a fim de que as virtudes sejam exercidas e provadas através do corpo. O homem é livre, já que meu Filho o libertou com seu sangue. Ninguém pode dominar a pessoa humana quanto à vontade, pois ela possui o livre arbítrio. Este se identifica com a vontade, concorda com ela. Fica, pois, o livre arbítrio entre a sensualidade e a razão, e inclina-se ora de um lado, ora de outro, conforme preferir.
   Quando a pessoa tenta livremente "congregar" as três faculdades em mim, na maneira explicada, todas as atividades espirituais e corporais humanas ficam unificadas. O livre arbítrio se afasta da sensualidade, tende para o lado da razão e eu me coloco no centro das faculdades, realizando a palavra do meu Filho: "Quando dois ou três se reunirem em meu nome, estarei no meio deles"(Mt 18,20). Realmente, como te disse (10.1) ninguém pode vir a mim senão por meio de Cristo. Esta a razão pela qual fiz dele uma ponte com três degraus. Esses degraus, como declarei (18.), representam três estados (espirituais) do homem.
  
   16.2 - A sede da Água viva.

   Acabei de explicar-te a figura dos três degrau comuns, que são as três faculdades da alma. São etapas sucessivas para se chegar à ponte-mensagem do meu Filho. Sem a unificação dessas três faculdades, ninguém conseguirá perseverar. Sobre a perseverança já falei antes (14.14), quando me imploraste sobre como devem agir os pecadores para saírem do rio do pecado e querias mais detalhes. Então eu disse que, sem perseverança, ninguém chega à meta final. Dupla é a meta: o vício e a virtude. Todas as duas pedem perseverança. Se queres chegar à Vida, hás de perseverar na prática das virtudes; quem preferir a morte eterna, que persevere no pecado. Pela perseverança chega-se até a mim, que sou a vida, ou ao demônio para beber as águas mortas.
   Todos vós, na "caridade comum" ou na "via perfeita", fostes convidados por meu Filho, que inflamado de desejo santo gritava no templo: "Quem tem sede venha a mim e beba, pois eu sou a fonte da água viva (Jo 7,37; 4,10). Ele não disse: "Vá ao Pai e beba", mas "venha a mim". Por que? Porque eu, Pai, não posso sofrer; ele, sim. Também vós, enquanto sois caminhantes e peregrinos nesta vida mortal, sempre tendes dificuldades. Como ficou dito (10.2), depois do pecado original, a terra produziu espinhos. E por que razão afirmou: "Venha a mim e beba"? Porque ao viver na "caridade perfeita", seguindo os mandamentos e conselhos, ou na "caridade comum", seguindo de fato só os mandamentos, conforme sua mensagem, vós bebeis e saboreais o sangue do Verbo encarnado. Quando vos unis a ele, imergis também em mim, oceano de paz. Eu e o Filho somos uma só coisa.
   Estais convidados, então, à fonte da água viva! É de vosso interesse que passeis pela ponte com perseverança. Nenhum obstáculo ou vento - próspero ou adverso - vos faça retroceder. Perseverai até me encontrar. Dar-vos-ei água viva em meu doce e amoroso Verbo encarnado, o Filho unigênito. Ele afirmou: "Eu sou a fonte da água viva" porque pela união da natureza divina com a humana ele me continha, como doador da água viva.
   Por que razão disse: "Venha a mim e beba?" Porque vós não viveis sem padecimentos. Ele pode sofrer, eu não! Fiz dele uma ponte; sem passar por ele ninguém consegue chegar até mim. Quando disse: "Ninguém chega ao Pai senão por mim" (Jo 14,6), falava uma verdade.
   Conheces agora qual o caminho a ser seguido, sabes como andar, isto é, com perseverança. Por outro modo não se bebe, pois essa é a virtude que alcança a glória e a coroa do triunfo em mim, vida duradoura.

16.3 - Que significa reunir "dois ou três"

   Volto a falar dos degraus gerai que deveis percorrer a fim de sair do rio do pecado, atingir a água viva e inserir-me na vossa caminhada.
   Pela graça eu repouso em vossas almas. Querendo progredir, é necessário que tenhais sede. Somente os sedentos acolhem aquele convite: "Quem tem sede, venha a mim e beba" (Jo 7,37). Quem não está com sede desanima de caminhar, para por cansaço ou em prazeres, vai de mãos vazias, sem se preocupar em levar consigo um balde para atingir a água. Mas sozinho ninguém progride. Ao apresentar-se o ferrão das contradições, olha-o como a um inimigo e retrocede. O homem solitário teme o encontro do inimigo; quem vai acompanhado, não sente medo. Pois bem, o cristão que ainda não percorreu os três degraus gerais, caminha solitário.
   Ocorre, pois, ter sede e reunir dois, três ou mais, na maneira explicada (16.1). Por que eu disse "dois e três"? Porque não existe dois sem três e três sem dois 65. O homem que está só não possibilita minha presença "no meio", por falta de companheiro que me permita estar "entre" eles. O solitário é um vazio, bem como aquele que só possui o egoísmo e vive sem amor pela minha graça e pelo próximo. Um nada, eis o que é a pessoa em quem estou ausente, por causa do pecado. Somente eu "sou aquele que sou" (Ex 3,14). O egoísta, solitário, não conta diante de mim, não me agrada. Eis por que meu Filho diz: Se dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" (Mt 18,20). Afirmei antes que não existe dois sem três ou três sem dois. Explico-me.
   Sabes que os mandamentos da lei se reduzem a dois; sem eles, nenhum outro é observado. São: amar-me sobre todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesma. Eis o começo, o meio e o fim dos mandamentos da lei. Todavia esses "dois" não se "reúnem" em mim sem os "três", isto é, sem a unificação das três faculdades da alma: a memória, a inteligência e a vontade. A memória há de recordar-se dos meus benefícios e da minha bondade; a inteligência pensará no amor inefável revelado em Cristo, pois ele se oferece como objeto de reflexão para manifestar a chama do meu amor; a vontade, unindo-se às duas faculdades anteriores, me amará e desejará como seu fim. Quando essas três faculdades estão assim reunidas, acho-me presente estre elas pela graça. E, como consequência, a pessoa vê-se repleta de amor por mim e pelo próximo, na "companhia" de verdadeiras e múltiplas virtudes.
   Em primeiro lugar, a vontade se dispõe a ter sede. Sede das virtudes, sede da minha glória, sede das almas. As demais sedes se apagam e morrem. Tendo subido o primeiro degrau, da afeição, o homem caminha seguro de si, sem temor servil. Livre do egoísmo, a vontade se põe acima de si mesma e acima dos bens passageiros. Se a pessoa quer possuir tais bens, ama-os e deles se serve em mim, com temor santo e verdadeiro, virtuosamente. Em seguida, passa-se ao segundo degrau, o da inteligência, no qual a pessoa, em cordial amor por mim, medita sobre Cristo crucificado, enquanto mediador. Por fim, a memória enche-se da minha caridade e alcança paz e a tranquilidade.
   Um recipiente vazio, ao ser tocado, faz rumor; o recipiente cheio, nenhum som produz. Da mesma forma, quando a memória está tomada pela luz da inteligência e pelo amor, a pessoa já não se perturba diante das adversidades ou atrativos do mundo; está repleta da minha presença, como sumo bem; não sente falsas alegrias, nem impaciência. Quando o homem sobe (os três degraus comuns), suas faculdades unificam-se, colocam-se sob domínio da razão e "congregam-se" em meu nome. Uma vez reunidos os dois amores - por Deus e pelo próximo - com as três faculdades - a memória para reter, a inteligência para refletir e a vontade para amar - encontra-se o homem na minha companhia, forte e seguro; está na companhia das virtudes; caminha seguro de si. Estou presente nele!
   Parte, então, o cristão, inflamado de desejo santo, sequioso de ir pelo caminho da verdade, à procura da fonte da água viva. É o desejo da minha glória, da salvação pessoal e da santificação alheia que incentiva a caminhar, pois é o único meio que possibilita alcançar a meta final. Na saída, o coração está vazio de apegos terrenos. Mas enche-se logo! Nenhum recipiente permanece com vácuo; se não contiver objetos materiais, enche-se de ar. O mesmo acontece com o coração humano. Ao se retirar dele o apego dos bens materiais, enche-se com o "ar" celeste do amor divino e com a "água" da graça. Em posse deste dom, o caminhante entra pela porta de Cristo e bebe a água viva em mim, oceano de paz.

16.4 - Sumário e exortação

   Acabei de mostrar-te como devem comportar-se as pessoas, em geral, para sair do rio do pecado, evitando o afogamento e a condenação eterna. Fiz ver quais são os três degraus comuns - as três faculdades - que são percorridos juntos. Expliquei aquela palavra de meu Filho: "Se dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" e afirmei que se trata da unificação dessas três faculdades com os dois principais mandamentos da lei, o amor por mim e pelo próximo. Ao realizar tal ascensão ou unificação, a pessoa sente sede da água viva, põe-se a caminho, passa pela ponte seguindo as pegadas de Cristo, o qual é tal ponte. Como disse, Jesus grita como fazia no templo: "Quem tem sede, venha a mim e beba, pois eu sou a fonte da água viva", e vós correis à sua voz que chama. Expliquei o sentido dessas palavras, como devem ser compreendidas. Compreendes melhor, agora, como vos amo e quanto é grande a confusão dos pecadores que vão pela estrada do demônio, convidados por ele às águas mortas.
   Foi dado assim resposta à tua pergunta sobre o modo de comportar-se para não morrer no rio do pecado: a solução é subir para a ponte (de Cristo), unificando ou "congregando" (as faculdades) com o amor ao próximo. É preciso levar até minha presença o coração e a vontade qual recipiente, pois dou a beber a quem mo suplica; é necessário encaminhar-se pela estrada de Cristo crucificado com perseverança até a morte! Este modo de comportar-se é igual para todos os homens, qualquer que seja o estado de vida. Ninguém pode desculpar-se dizendo: "Sou casado, tenho filhos e compromissos sociais, por isso me dispenso de seguir tal estrada". Impedimentos não existem e nenhuma pessoa tem razões para falar assim! Já disse que todos os estados de vida são do meu agrado, quando vividos santamente. Todos os seres são bons; todos foram feitos por mim. Não criei as coisas para que vos causassem a morte, mas a vida. E nada existe mais fácil do que amar; nem nada mais agradável. Somente vos peço amor por mim e pelos outros, algo que pode ser feito em qualquer tempo, lugar ou condição. É suficiente amar e possuir os bens (materiais) para louvor e glória do meu nome!
   Já expliquei a ilusão dos pecadores. Não seguem a iluminação da fé, são egoístas, amam e possuem os bens materiais esquecidos de mim. Vão sofrendo, insuportáveis a si mesmos. Se não se converterem pela forma explicada (14.14), irão para a condenação eterna. Eis como hão de comportar-se todas as pessoas, em geral. Até eu te falei da vivência própria dos cristãos da "caridade comum", isto é, daqueles que praticam os mandamentos, mas somente seguem os conselhos intencionalmente. Passo a ocupar-me dos que iniciam a escalada (da ponte) e desejam um caminho mais perfeito, obedecendo concretamente seja aos mandamentos como aos conselhos.
   Vou mostra-los em três estados, como que em três degraus especiais, dos quais já falei "em comum" ao tratar das faculdades da alma. Um estado é imperfeito, o segundo mais perfeito, o terceiro perfeitíssimo; no primeiro (o homem) se comporta como servo assalariado, no segundo como servo fiel, no terceiro como filho, ou seja, como pessoa que me ama sem interesses pessoais. São três estados que podem acontecer em diversas pessoas ou (sucessivamente) numa única pessoa. Acontecem ou podem acontecer numa mesma pessoa quando ela progride esforçadamente, aproveitando o tempo, e passa do estado servil ao liberal, e do liberal ao filial.
   Eleva-te pela fé e contempla como caminha a humanidade peregrina! Uns com imperfeição, outros obedecendo perfeitamente aos mandamentos, outros ainda vivendo perfeitissimamente os conselhos evangélicos. Verás donde procede a imperfeição, donde a perfeição; entenderás como é grande a ilusão daqueles que não matam a raiz do egoísmo, já que em qualquer estado de vida, urge destruir o amor-próprio.  
62 - Repito que o termo "sensualidade" tem um sentido especial em Catarina. Trata-se da parte sensível do homem enquanto perturbada pelo pecado original e fortemente inclinada para o mal.
65 - Catarina resume um ponto de doutrina importante no seu esquema ascético-místico: sem a observância dos "dois" mandamentos (amor de Deus e do próximo) é impossível unificar em Deus as três faculdades (inteligência, memória e vontade) e vice-versa. Para progredir na caminhada do espírito, é preciso por em sintonia a vivência exterior (mandamentos e conselhos) com a psicologia espiritual interior (unificação das faculdades em Deus).
       

CATARINA PEDE EXPLICAÇÕES SOBRE OS DEGRAUS DA PONTE

15 . CATARINA PEDE EXPLICAÇÕES SOBRE OS DEGRAUS DA PONTE

Então aquela serva, inflamada de desejo santo, refletia sobre a imperfeição pessoal e alheia. Sofria pelo que escutara (de outros) e vira (pessoalmente) sobre a cegueira humana. De um lado (via) a bondade divina, que nada pusera no mundo como impedimento à santificação dos homens, qualquer que fosse o estado de vida; as criaturas até favorecem e provam as virtudes. De outro lado, via tantos a rodar pelo rio do pecado, cheios de egoísmo e falso amor; sem se converterem, iam para a eterna condenação. Dos pecadores que começavam a deixar o rio do pecado, muitos voltavam atrás, levados pelas razões que Deus Pai bondosamente lhe explicara. Sentia-se amargurada. Fixou o pensamento da fé em Deus e lhe disse:
   - Ó Amor sem preço, como é grande a ilusão dos homens! Se fosse do teu agrado, eu ficaria contente de que me falasses com mais detalhes sobre os três degraus do corpo do teu Filho, sobre o que devem fazer os pecadores para sair de uma vez do pélago e se conservarem no caminho da Verdade; enfim, sobre quais são os homens que sobem pela escada do corpo de teu Filho!