sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE II



 II - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA FORMAÇÃO APOSTÓLICA


2.1 - A penitência sozinha não dá reparação à culpa

   Então a Verdade eterna arrebatou em si, com maior violência, o desejo daquela serva. Tal qual acontecia no Antigo Testamento, quando o fogo do céu descia sobre os holocaustos oferecidos a Deus e consumia a oferenda a ele agradável, a doce Verdade enviou o fogo do Espírito Santo sobre aquela serva e aceitou o sacrifício de amor que ela fazia de si mesma. Dizia-lhe:
   - Minha filha, não o sabes? Todos os sofrimentos que um homem suporta ou pode suportar nesta vida não são suficientes para satisfazer a menor culpa. Sendo eu um bem infinito, a ofensa contra mim pede satisfação infinita. Desejo que o compreendas. Os males desta existência não são punições, mas correção a filho que ofende. Assim, a satisfação se dá pelo amor, pelo arrependimento e pelo desprezo do pecado. Esse arrependimento é aceito no lugar da culpa e do reato, não pela virtude dos sofrimentos padecidos, mas pela infinitude do amor. Deus, que é infinito, quer amor e dor infinitos.
   A dor por ele desejada é infinita em dois sentidos: com relação à ofensa feita contra o Criador e com relação àquela feita ao próprio homem. Quem se acha unido a mim por um amor infinito, sofre quando me ofende ou vê que outros me ofendem; igualmente, quando padece no corpo ou no espírito, qualquer seja a sua origem, tem merecimento infinito. Dessa forma satisfaz pela culpa, que era merecedora do inferno. Embora praticadas no tempo finito, são ações válidas, pois fortalecem-nas as virtudes, a caridade, a contrição, o desprezo da culpa, que são infinitos.
   Foi quanto ensinou Paulo, ao afirmar: "Se eu falasse a língua dos anjos, adivinhasse o futuro, partilhasse os meus bens com os pobres, e entregasse o corpo às chamas, mas não tivesse a caridade, tudo isso de nada valeria" (1Cor 13,13). O glorioso apóstolo faz ver que os gestos finitos são insuficientes para punir ou satisfazer, sem a força da caridade.

2.2 - A culpa é reparada pelo amor
   
   Filha, fiz-te ver que a culpa não é reparada neste mundo pelos sofrimentos, suportados unicamente como sofrimentos, mas sim pelos sofrimentos aceitos com amor, com desejo ² , com interna contrição Não basta a força da mortificação; ocorre o anseio da alma. O mesmo acontece, aliás, com a caridade e qualquer outra virtude, que somente possuem valor e produzem a vida em meu Filho Jesus Cristo crucificado, isto é, na medida em que a pessoa dele recebe o amor e virtuosamente segue suas pegadas. Somente assim adquirem valor. As mortificações satisfazem pela culpa na feliz comunhão do amor, adquirido na contemplação da minha bondade. Satisfazem graças à dor e à contrição quando praticadas no autoconhecimento e na consciência das culpas pessoais. Esse conhecimento de si gera desprezo pelo mal, pela sensualidade ³, induz o homem a julgar-se merecedor de castigos e indigno de recompensa. Assim - acrescentava a doce Verdade _ é pela contrição interior, pelo amor paciente e pela humildade, considerando-se merecedora de castigos e não de prêmio, que a pessoa oferece reparação.

² - O desejo santo da glória divina e da salvação dos homens.
³ - A palavra sensualidade, no pensamento de Catarina, não inclui a conotação própria de lubricidade, própria do termo em português. Quer apenas indicar a sensibilidade humana, carregada de tendências para o mal, por efeito do pecado original.


2.3 - O caminho da Verdade

   Tu me pedes sofrimentos como reparação das ofensas cometidas contra mim pelos homens; desejas conhecer-me e amar-me como suma Verdade. O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência do meu ser - Vida eterna que sou - é este: nunca abandones o autoconhecimento! Ao desceres para o vale da humildade, reconhecer-me-ás em ti, e de tal conhecimento receberás tudo aquilo de que necessitas. Nenhuma virtude tem valor sem a caridade, no entanto é a humildade que forma e nutre a caridade. Conhecendo-te, tu te humilharás ao perceber que, por ti mesma, nada és. Verás que o teu ser procede de mim, que vos amei, a ti e aos outros, antes de virdes à existência. Além disso, quando quis recriar-vos na graça com inefável amor, eu vos lavei e vos concedi uma vida nova no sangue de meu Filho unigênito; naquele sangue derramado num grande incêndio de amor. Para quem destrói em si o egoísmo, é no autoconhecimento que tal sangue manifesta a Verdade. Não existe outro meio. Por meio dele, o homem em inexprimível amor conhece-me e sofre. Não com um sofrimento angustiante, aflitivo e árido, mas com uma dor que alimenta interiormente. Ao conhecer a Verdade, a alma sofrerá terrivelmente, pois toma consciência dos próprios pecados e vê a cega ingratidão humana. Nenhuma dor sofreria, se não amasse 4.
4 - Este parágrafo resume a doutrina catariniana da cela interior, isto é, do autoconhecimento em Deus.


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