quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO.(Cont. 3)

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 3)

18.4 - Os sinais da perfeição.

   Até agora eu te fiz ver, por diversos modos, como a alma supera o amor imperfeito e qual é seu comportamento quando chega ao amor-amizade e filial. Afirmei, e torno a repetir, a maneira consiste na perseverança e no autoconhecimento. Esse conhecimento de si, porém, deve ser acompanhado pelo conhecimento da minha bondade, sob pena de cair na perturbação interior. O autoconhecimento produz certo desprezo pelo apetite sensível e pelas consolações; tal desprezo, alicerçado na humildade, gera a paciência; esta, por sua vez, fortifica o homem na luta contra o demônio, as perseguições humanas, e regula seu comportamento para comigo no momento em que eu retirar o fervor espiritual. Tudo isso é tolerado com paciência. Se a sensualidade quiser incomodar, revoltando-se contra a razão, então a consciência agirá como juiz e fará a racionalidade prevalecer, coibindo os impulsos errados. Infelizmente há pessoas que, ao dominar a sensualidade, exageram e são radicais, tanto no que se refere aos impulsos maus como às inspirações mandadas por mim. Disto falava Gregório, meu servidor, dizendo: "A consciência delicada põe pecado onde ele não ocorre. Quem pretende vencer a imperfeição deverá agir da seguinte forma: sob a luz da fé, enclausura-se no conhecimento do próprio nada, imite os apóstolos que permaneceram no Cenáculo, perseverantes na oração humilde e contínua, até a vinda do Espírito Santo. Como já disse, o comportamento de quem supera o amor imperfeito é o seguinte: fecha-se em casa para dela sair na perfeição; ali permanece em vigília de oração, conservando o pensamento fixo na mensagem do meu Filho, examina-se orando e, com o desejo santo, humilha-se diante das obras que opero em sua pessoa.

18.4.1 - Efusão do Espírito Santo.

   Resta-me falar sobre os sinais reveladores de que alguém atingiu o amor perfeito. Pois bem, o sinal é o mesmo que aconteceu aos apóstolos, após terem recebido o Espírito Santo: saíram do Cenáculo pregando a mensagem do meu Filho. Já não temiam os sofrimento, gloriavam-se até de padecer, não se preocupavam ao enfrentar os tiranos deste mundo, dizendo-lhes a verdade e promovendo a minha glória e louvor.
   Quando uma pessoa entra para a vigília do autoconhecimento, segundo a maneira que expliquei, retorno a ela com a chama do meu amor. Durante essa amorosa vigília, ela adquire as virtudes na perseverança; participa do meu poder e domina a própria sensualidade; participa da sabedoria do Filho, que lhe permite conhecer a verdade, a falácia das consolações, a maldade enganadora do demônio. Tudo isto a faz superar a imperfeição e aderir ao amor perfeito, participando do próprio Espírito Santo, que é o Amor. Sua vontade é fortalecida para suportar os sofrimentos, com a coragem de sair de si mesma em meu nome e trabalhar em favor do próximo. No apostolado, tal pessoa não abandona a cela do autoconhecimento. Suas virtudes se exteriorizam por diversas formas, reversando-se sobre o próximo necessitado. O temor que retinha os imperfeitos, o medo de perder as consolações sensíveis desaparecem. Ao atingir o perfeito amor, o homem sai de si mesmo, abandona o próprio modo egoísta de viver.
   Tal atividade faz passar ao quarto estado. Do terceiro estado - que é o perfeito e no qual a pessoa saboreia e pratica a caridade fraterna - passa ao último, o da perfeita união. Estes dois estados - o terceiro e o quarto - estão intimamente unidos entre si; um não existe sem o outro, tal como acontece com o amor pelo próximo e o amor por mim. É quanto vou demonstrar, falando do terceiro estado.

18.4.2 - Compreensão da caridade de Cristo.

   Disse que o sinal de que alguém superou a imperfeição e atingiu o amor perfeito é a "saída de si mesmo". Presta atenção e considera como essas pessoas caminham rápidas pela ponte-mensagem de Cristo crucificado, que foi na terra vossa norma, caminho e verdade. Elas não me olham à maneira dos imperfeitos. Estes, como temem os sofrimentos, amam-me porque em mim não acham a dor. Na realidade não procuram a mim, mas querem as consolações que em mim encontram. Os perfeitos agem de outro modo; como que embriagados e inflamados de caridade, percorrem os três degraus, por mim simbolizados antes (16.1) nas três faculdades da alma, e que agora apresento na figura do corpo de Cristo crucificado: subiram aos pés de Cristo pelo duplo amor da alma e chegaram ao costado, onde descobrem o "segredo" do coração e o valor do batismo na água. Compreendem que este alcança seu valor no sangue de Cristo, pois pela graça batismal a alma fica unida e amalgamada no sangue.
   Sim, é no costado de Cristo que o homem entende essa realidade: é aí que ele toma consciência da grandeza do amor divino. Se bem te lembras, foi quanto te mostrou certa vez, meu Filho Jesus. Tu lhe perguntaste: "O Cordeiro bondoso e imaculado, já estavas morto quando te abriram o costado. Por que razão quiseste que teu coração fosse ferido e aberto?"
Ele respondeu: 
   "As razões são muitas. Vou dizer a principal. Meu amor pela humanidade é infinito, mas o sofrimento não o era. Desse modo, o padecimento corporal não era capaz de revelar meu amor sem medidas. Foi para que se manifestasse esse segredo do coração, que o costado foi aberto. Com isso, compreenderíeis mais de quanto dizia o conhecimento externo. Quando permiti que jorrasse sangue e água, fiz ver que o batismo na água recebe sua força na paixão. Existem dois modos de se "batizar" no sangue: o primeiro é o daqueles que derramam o seu sangue por mim; tal batismo vale, mesmo que não seja possível batizar-se na água. O segundo, é o batismo feito no fogo, pelo desejo não realizado de receber o batismo na água; também neste caso só se dá o batismo na virtude do sangue e do amor que se entrelaçam, pois o sangue foi derramado por amor. Um terceiro modo de batizar-se no sangue - mas em sentido figurado - foi providenciado pelo Pai, o qual reconhece a fraqueza humana. Costuma o homem cair em pecado mortal embora nenhuma força externa, graças à sua liberdade, o possa obrigar, incluindo a própria fraqueza. Pelo pecado mortal a pessoa perde a graça batismal; como remédio, o Pai deixou a penitência, que constitui um perene batismo no sangue. Ela é recebida mediante a contrição e confissão dos pecados aos ministros; possuindo a chave do sangue, eles, pela absolvição, o derramam na face da alma. Sendo impossível a confissão, basta a contrição interior, pois com ela o meu Espírito vos dá o perdão. Mas se a confissão for possível, quero que a façais; não recebe perdão aquele que, podendo fazê-lo, não a procura. É verdade que poderá obter o perdão no último instante da vida aquele que desejar confessar e não o conseguir; mas ninguém será tão louco para confiar nessa possibilidade, deixando para resolver seus problemas na hora da morte. Ninguém pode ter a certeza de não cair na obstinação, de modo que por justiça eu lhe diga: "Não te lembraste de mim durante a vida, no tempo oportuno; também eu não me recordo de ti na hora da morte". Portanto, não se deve deixar para depois. E se algum de vós retardou (a penitência) por imperfeição, não deixe tal batismo para o derradeiro momento. Como vês, a penitência é um "batismo" perene. Nele o homem deve ir se batizando até o fim da vida. A confissão manifesta como a minha morte na cruz foi um ato finito, mas com efeitos infinitos para vós. Qual Verbo encarnado, eu suportei o sofrimento; pela união das duas naturezas, a divindade eterna assumiu tudo o que padeci com imenso amor. Neste sentido, pode-se afirmar que minha dor foi infinita, embora não tenham sido assim a dor corporal e a pena do desejo que eu tinha de remir o mundo, pois cessaram com a morte. Quanto ao perdão, fruto daquele sofrimento, foi infinito,  como tal o recebeis. Em caso contrário, a humanidade presente, a passada e a futura ainda estariam no seu pecado, e pecador algum receberia o perdão. Eis quanto eu manifestei na chaga do meu peito, no momento em que compreendeste o segredo do meu coração. Fiz ver que meu amor por vós é mais profundo de quanto possa indicar a dor passageira. Aliás, a minha misericórdia continua a revelar-se através da confissão, este "batismo" no sangue que deveis receber com amor, visto que por amor foi versado. O mesmo acontece com o batismo da água, oferecido a quantos o querem ter, pois a água está unida ao sangue e ao fogo do amor. Por ocasião do batismo de água, a alma reveste-se de sangue; é o que fazem ver o sangue e a água que escorreram do costado aberto".    




segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

CATECISMO SOBRE A COMUNHÃO FREQUENTE- SÃO JOÃO MARIA VIANNEY


CATECISMO SOBRE A COMUNHÃO FREQUENTE
SÃO JOÃO MARIA VIANNEY

       Meus filhos, todos os seres da criação precisam alimentar-se para viver: foi por isso que Deus fez crescer as árvores e as plantas; é uma mesa bem servida, onde todos os animais vêm tomar cada alimento que lhe convém. Mas é preciso que a alma também se alimente. Onde está então o alimento dela? Meus filhos, quando Deus quis dar um alimento à nossa alma para sustentá-la na peregrinação da vida, passeou o olhar sobre a criação e não achou nada que fosse digno dela. Então dobrou-se sobre si mesmo e resolveu dar-se. 
   Ó minha alma, como és grande, já que só Deus é que te pode contentar!... O alimento da alma é o Corpo e Sangue de um Deus!  Ó belo alimento! A alma só pode alimentar-se de Deus! Só Deus lhe basta! Só Deus pode enchê-la! Só Deus lhe pode lhe matar a fome! É-lhe preciso absolutamente o seu Deus!... 
   Que felizes são as almas puras que têm a dita de se unirem a Nosso Senhor pela comunhão! No Céu, elas brilharão como belos diamantes, porque Deus se verá nelas (Gloria ejus in te videbitur, disse o Espírito Santo- Is 60,2).  Há em todas as casas um lugar onde se conservam as provisões da família: é a copa. A Igreja é a casa das almas; é a nossa casa, de nós que somos cristãos. Pois bem! Nessa casa há uma copa. Vedes o tabernáculo? Se se perguntasse às almas dos cristãos: Que é aquilo? Vossas almas responderiam: “É a copa”.
   Não há nada tão grande, meus filhos, como a Eucaristia! Ponde todas as boas obras do mundo contra uma comunhão bem feita; será como um grão de pó diante de uma montanha. Fazei um pedido quando tiverdes a Deus no vosso coração; Deus nada vos poderá recusar se Lhe oferecerdes Seu Filho e os merecimentos de Sua Santa Morte e Paixão.
   Meus filhos, se se compreendesse o preço da Sagrada Comunhão, evitar-se-iam as menores faltas para ter a felicidade de fazê-la mais amiúde. Conservar-se-ia a própria alma sempre pura aos olhos de Deus. Reparai, meus filhos, suponho que vos tenhais confessado hoje; haveis de velar sobre vós mesmos; ficareis contentes com o pensamento de que amanhã tereis a ventura de receber o bom Deus no vosso coração... Amanhã, tampouco, podereis ofender a Deus; vossa alma estará toda embalsamada do Sangue Precioso de Nosso Senhor... Ó bela vida!!!
   Ó meus filhos, como será bela na eternidade uma alma que tiver recebido frequente e dignamente o bom Deus! O Corpo de Nosso Senhor brilhará através do nosso corpo, Seu Sangue adorável através do nosso sangue; nossa alma ficará unida à alma de Nosso Senhor durante toda a eternidade... Será lá que ela gozará de uma felicidade pura e perfeita!... Meus filhos, quando uma alma que recebeu Nosso Senhor entra no paraíso, aumenta a alegria do Céu. Os anjos e a Rainha dos anjos vêm ao encontro dela, porque reconhecem o Filho de Deus nessa alma. É então que ela se indeniza das penas e dos sacrifícios que tiver suportado durante a vida.
   Meus filhos, sabe-se quando uma alma recebeu dignamente o sacramento da Eucaristia: Ela fica tão mergulhada no amor, tão penetrada e mudada, que não a reconhecem mais nas suas ações, nas suas palavras... É humilde, é mansa, é mortificada, é caridosa, é modesta, harmoniza-se com todos. É uma alma capaz dos maiores sacrifícios; enfim não é mais reconhecível.
   Ide pois à comunhão, meus filhos, ide a Jesus com amor e confiança! Ide viver Dele, a fim de viver por Ele! Não digais que tendes demasiado que fazer. O divino Salvador não disse: “Vinde a Mim vós que trabalhais e estais sobrecarregados... vinde a Mim, e eu vos aliviarei?” Poderíeis resistir a um convite tão cheio de ternura e de amizade? – Não digais que não sois dignos. É verdade, não sois dignos, mais precisais Dele. Se Nosso Senhor tivesse tido em mira nossa dignidade, nunca teria instituído o Seu Belo Sacramento de amor; porque ninguém no mundo é digno Dele, nem os santos, nem os anjos, nem os arcanjos, nem a Santíssima Virgem... mas Ele teve em mira as nossas necessidades, e nós todos precisamos Dele. Não digais que sois pecadores, que tendes demasiadas misérias e que é por isto que não ousais aproximar-vos Dele. Eu gostaria outro tanto de vos ouvir dizer que estais demasiado doentes, e que é por isto que não quereis tomar remédio, nem chamar o médico...
   Todas as orações da missa são uma preparação para a comunhão; e toda a vida de um cristão deve ser uma preparação para essa grande ação.
  Devemos trabalhar para merecer receber Nosso Senhor todos os dias. Como deveríamos ficar humilhados quando vemos os outros irem à Santa Mesa, e nós ficarmos imóveis no nosso lugar! Como é feliz um anjo custódio que conduz uma bela alma à Santa Mesa! Na primitiva Igreja, comungava-se todos os dias. Quando os cristãos se arrefeceram, substituiu-se o pão bento ao Corpo de Nosso Senhor; é ao mesmo tempo uma consolação e uma humilhação... é pão bento, na verdade, mas não é o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor!
   Há alguns que fazem todos os dias a comunhão espiritual com pão bento. Se estivermos privados da comunhão sacramental, substituamo-la, tanto quanto possível, pela comunhão espiritual, que podemos fazer a cada instante; porquanto devemos estar sempre em um desejo ardente de receber o bom Deus.
   A comunhão faz à alma como um sopro de fole num fogo que começa a apagar-se, mas onde há ainda muita brasa: sopra-se, e o fogo se reanima. Depois da recepção dos sacramentos, quando sentimos o amor de Deus esmorecer, depressa a comunhão espiritual!... Quando não pudermos vir à Igreja, volvamo-nos para a banda do tabernáculo. O bom Deus não tem parede que o detenha. Digamos cinco Pai-Nossos e cinco Ave-Marias para fazer a comunhão espiritual... Nós só podemos receber a Deus uma vez por dia; uma alma abrasada de amor supre a isso pelo desejo de recebê-lo a cada instante.
   Ó homem, como és grande!...  Alimentado e abeberado do Sangue de um Deus! Oh, que doce vida essa vida de união com Deus! É o Paraíso na terra: não há mais cruzes! Quando tendes a ventura de receber o bom Deus, sentis durante algum tempo um gozo, um bálsamo no coração!... As almas puras são sempre assim; por isto essa união lhes faz a força e a ventura.
   Meus filhos, as pessoas que recebem a Sagrada Comunhão no momento da morte são bem felizes! No juízo particular, que se faz imediatamente após a morte, Deus Pai vê seu Filho nelas; não pode condená-las ao inferno.  Oh, não... Vede, meus filhos, como é vantajoso receber os últimos sacramentos! 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 2)

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 2)

18.3.2 - Desapego das consolações.

Deve o cristão entusiasmar-se varonilmente pela oração que é uma verdadeira mãe. Isto acontece quando ele se fecha na cela do autoconhecimento, depois de atingir o amor-amizade e o amor filial. Quem não percorre tais etapas, permanecerá sempre na tibieza e na imperfeição, amando a mim e ao próximo por interesses pessoais, na procura de consolações. Sobre tal amor imperfeito quero discorrer agora, sem ocultar-te uma ilusão decorrente desse apego às consolações.
Desejo que o saibas: o servidor que me ama na imperfeição procura mais as consolações sensíveis que a minha divindade. É a atitude da pessoa que se perturba quando desaparecem o prazer espiritual e a tranquilidade de vida. Muitos vivem virtuosamente quando estão na prosperidade; desorientam-se na prática da virtude se lhes mando alguma dificuldade. Quando alguém lhes pergunta: Por que está perturbado?", respondem: "Porque estou em tal ou tal contrariedade; parece-me que estou perdendo o pouco de bem que faço. Já não tenho aquele entusiasmo e aquele amor de antes, por causa desta dificuldade. Acho que, na tranquilidade anterior, tirava mais proveito que agora.".
Enganam-se tais pessoas relativamente àquela "tranquilidade anterior". Não é a contrariedade que lhes traz menor amor e menor dedicação. Em si mesmas, as ações possuem idêntico valor na aridez de espírito e no fervor. Aliás, com a aridez as ações podem até valer mais, se as pessoas tivessem paciência. Mas elas se perturbam, pelo fato que antes sentiam maior prazer. Na verdade, antes me amavam pouco e viviam com a consciência tranquila na prática de pequenas boas obras. Retirado o ponto de apoio, crêem ter perdido o sossego do próprio agir. Com tais pessoas acontece como ao jardineiro, satisfeito no seu trabalho por causa do prazer que sente. Labutar no jardim parece-lhe um descanso; estar no meio das flores, uma satisfação. De fato, ele se alegra mais com as flores do que com o trabalho. Se lhe retirarem as flores, o prazer acabará. Também aquelas pessoas! Se sua principal alegria se concentrasse na prática do bem, não cairiam na perturbação. Alegrar-se-iam até, pois quem realmente deseja uma coisa jamais poderá ser impedido de realizá-la; mesmo que a privem da satisfação que acompanha sua atividade, como no caso das flores. Enganam-se essas almas colocando o alicerce de suas atividades nas consolações, pois dizem: "Antes de entrar nesta aridez, eu agia melhor e com mais prazer; a prática do bem me ajudava. Agora já não me favorece, não sinto mais gosto".
É errado tal modo de pensar e falar. Nada diminuiria em tais almas, se elas se comprazessem no agir virtuosamente por causa da virtude em si, até acresceriam seus esforços. Na realidade agem por egoísmo e então tudo se acaba. Tal é o engano em que caem muitos na vida virtuosa, proveniente das consolações sensíveis.
Costumo recompensar toda boa ação e com maior ou menor liberalidade conforme a medida do amor de quem a pratica; por isso, concedo consolações espirituais aos meus servidores imperfeitos, durante a oração. Ajo de tal forma, não para que apreciem tais satisfações erroneamente, isto é, atribuindo maior valor ao dom que ao doador, que sou eu. Meu desejo é que tomem consciência do meu amor e da própria indignidade, deixando o prazer em segundo plano. O engano consistirá em agir diversamente.     

18.3.2.1 - A rotina das consolações.

Um primeiro engano consiste na procura de determinada satisfação espiritual para nela se comprazer. Tendo-a experimentado antes, a pessoa começa a agir sempre do mesmo jeito para obter idêntico prazer. Na verdade, eu não sigo sempre as mesmas estradas, como se fosse coagido a dar consolações e gostos. Concedo-as diversificadamente segundo meu beneplácito e as necessidades humanas. Mas há gente sem discernimento, que continua a procurar a consolação naquele modo, com a pretensão de impor leis ao Espírito Santo. Atitude errada! Deveriam isto sim, caminhar varonilmente pela ponte-mensagem de Cristo crucificado, aguardando os dons na modalidade, tempo e lugar que eu quisesse enviar. Se nada concedo, faço tal coisa por amor, nunca por maldade. Quero que os homens me procurem por mim mesmo, não por motivo das consolações que propicio; quero que acolham humildemente meu amor sem pensar muito nas satisfações. A atitude contrária produz sofrimento e perturbação no momento em que faltar a consolação, objeto de tanta preocupação. Tais pessoas querem conforto sob medida; tendo experimentado um prazer espiritual, pretendem repetir a mesma sensação. Alguns são de tal modo ignorantes que, se os visito de um modo diferente, recusam-me! Somente aceitam aquela modalidade costumeira. É um defeito inerente à própria paixão e defeito espiritual em si; é uma ilusão, pois como não pode alguém deter-se num único método, mas haverá de progredir na virtude ou voltar atrás, assim não pode o espírito fixar-se num determinado gozo espiritual por mim concedido, como se minha bondade não pudesse dar outro.
Concedo consolações de diversas maneiras: uma vez será contentamento; outra vez arrependimento que agita interiormente; vezes há que me torno presente na alma sem que ela o perceba, pois faço estar no espírito a pessoa de meu Filho em vários modos: ora sentirá na profundidade da alma grandíssimo prazer, ora nem o perceberá, como se poderia esperar. Realizo todas essas coisas por amor; quero que o homem progrida na humildade, na perseverança; quero ensinar-lhe a não ditar regras (ao Espírito Santo), a não considerar as consolações como uma finalidade. Quero que alicerce em mim sua virtude; que aceite os acontecimentos e meus dons com humildade. Quero que acreditem no seguinte: que concedo as consolações espirituais de acordo com as necessidades da sua santificação e aperfeiçoamento.

18.3.2.2 - O egoísmo espiritual.

Acabo de falar sobre o engano em que caem aqueles que desejam viver interiormente consolados com minha presença. Passo a ocupar-me de uma outra ilusão: a das pessoas que colocam toda sua satisfação na busca das consolações e não socorrem os outros em suas necessidades espirituais ou materiais sob pretexto de virtude. Dizem assim: "Quando vou ajudar os outros, não consigo rezar as preces de horário". Acreditam ofender-me quando não sentem consolação interior. Na realidade enganam-se quanto ao sossego do espírito e ofendem-me muito mais não socorrendo o próximo, de que se de fato perdessem a paz da alma.
É meu desejo que todas as orações, vocais ou mentais, levem a pessoa ao perfeito amor por mim e pelo próximo. Dessa maneira, peca mais quem se descuida do amor pelo outro a fim de orar, do que aquele que, por causa dos outros, deixa de orar. No próximo, o homem sempre me encontra; não, porém, na satisfação pessoal em que me procura. A ausência de ajuda ao irmão, ipso facto faz diminuir a caridade fraterna e o amor por mim. Querendo ganhar, a pessoa sai perdendo. Mas ao "perder", ganha, isto é: ao renunciar ao conforto espiritual no esforço de salvar o próximo, lucra em mim e no próximo; ao prestar serviço ao outro na caridade, experimenta toda a doçura do meu amor. Pelo contrário, sai-se mal quando recusa auxiliar os demais. De fato, um dia ou outro terá que ajudá-lo, por amor ou por dever, seja nas enfermidades do corpo, seja do espírito. Então falo-á de má vontade, com tristeza íntima e remorso de consciência, tornando-se insuportável a si mesmo e aos demais. Em tal ocasião, se alguém lhe perguntar: "Por que estás tristonho?", responderá: "Porque perdi a paz e a tranquilidade de espírito; deixei de fazer muitos atos a que estava habituado e julgo que ofendi a Deus".
A realidade não é essa. Tal pessoa não sabe discernir onde se encontra realmente seu pecado, pois sua preocupação fixou-se na procura de consolações interiores. Oxalá entendesse que o pecado não está na privação do consolo espiritual, nem na ausência de oração quando alguém precisa de auxílio, mas na ausência de amor pelo outro, a quem é preciso ajudar por meu amor. Como vês, o engano consiste no egoísmo espiritual.
Outro tipo de egoísmo existe, semelhante, que pode causar prejuízos ainda maiores. Costumo dar a meus servidores gáudio espiritual e visões. Se alguém unicamente se preocupar na obtenção de tais favores, acabará por cair na amargura e no tédio no momento que notar sua ausência progressiva; cada vez que eu não o der, julgarão que perderam a graça. Já afirmei que costumo visitar e ausentar-me do homem no tocante às consolações - sem prejuízo do estado de graça - a fim de levar a pessoa à perfeição. Em tais circunstâncias, muitos mergulham na tristeza e sentem-se num inferno, porque não mais experimentam os prazeres da mente, substituídos pelo tormento das tentações.
Ninguém deveria ser tão ignorante assim, deixando-se ludibriar pelo egoísmo sem compreender a realidade. É preciso discernir quando estou presente, compreender que sou o sumo bem, aquele que dá a boa vontade no tempo das batalhas! Que não se fique correndo atrás de consolações! Humilhe-se o homem, considere-se indigno de viver no sossego e quietude de espírito. Aliás, é por isso que me afasto. Desejo que a pessoa seja humilde, que tenha consciência da minha caridade, que note a retidão interior que lhe concedo na hora da dificuldade. Quero que beba o leite espiritual não somente por borrifos na face da alma, mas sugando diretamente no coração do meu Filho. Juntamente com tal leite, quero que coma sua carne; que procure consolações no corpo do crucificado, vivendo sua mensagem, que transformei numa ponte que vos conduza até mim.
Eis as razões por que me afasto durante a aridez do espírito. Se os homens caminharem com prudência, não parando estupidamente na procura de consolações, retornarei depois com imensa delícia, força, luz, ardor de caridade. Os que sentirem rebeldia e tristeza pela ausência de consolações, pouco aproveitarão e continuarão em sua tibieza.

18.3.2.3 - O diabo em forma de luz.

Pode acontecer ainda que alguém caia num quarto engano, quando o demônio se apresenta em forma de luz. Costuma ele tentar os homens de acordo com as disposições espirituais que neles encontra. Por tal motivo, ninguém deve desejar satisfações e visões espirituais; aspire-se somente pela virtude. Na humildade, cada um se julgue indigno de tais coisas; se as receber, comporte-se segundo a caridade. O diabo é capaz de mostrar-se numa figura de luz, por vários modos, na alma de quem gulosamente sonha com visões. Umas vezes toma a figura de um anjo, outras vezes a semelhança do meu Filho, outras ainda como se fosse um dos meus santos. Dessa maneira, ele usa o anzol do prazer espiritual para atrair a alma, para prendê-la em suas mãos. A única solução em tais casos, é a humildade, pois o diabo não tolera o homem humilde. Somente a humilde renúncia a qualquer satisfação pessoal evitará que o diabo retenha a alma. Assim mesmo, tal renúncia deve estar acompanhada do amor; não do amor pelo dom, mas pelo doador, que sou eu.
Se me perguntares: "Qual sinal que nos indica que a 'visita' é do diabo e não tua?", respondo: "Se for o demônio em forma de luz, sua presença inicialmente produzirá alegria, mas pouco a pouco ela irá desaparecendo, até transformar-se em tédio, trevas e remorso de consciência. Ao contrário, se for uma visita minha, no começo a pessoa sentirá temor, um temor santo que depois lhe dará alegria, segurança e uma feliz prudência que, refletindo, não duvida. Dir-se-á: "Não sou digno de receber tua visita; como pode ela acontecer?" e projeta-se na imensidade do meu amor, ciente do bem que lhe posso fazer. Não tomo em consideração a indignidade humana, mas a minha bondade. É esta que, pela graça e demais favores, torna o homem apto a receber-me. Não desprezo a afeição com que ele me invoca. Acolhendo-me, diz a alma:"Eis a tua serva; faça-se a tua vontade" (LC 1,38), e ao encerrar a oração em que a visitei, conservará alegria e jubilo espiritual; por humildade sentir-se-á indigna, mas com amor reconhecerá minha presença.
São esses os sinais que ocorre tomar em consideração para distinguir quem visita a alma, se sou eu ou se é o demônio. Na minha visita, o orante começa pelo temor, passando depois à alegria e ao desejo de operar o bem; sendo o demônio, o primeiro impulso será de alegria, mas virão depois perturbação interna e trevas. Quem desejar progredir no amor seja humilde, prudente, não se engane. Perde a rota quem prefere navegar seguindo o amor imperfeito das consolações, e não a minha caridade.
Julguei oportuno tratar de tais enganos, nos quais costumam cair os cristãos da "caridade comum" que vivem com pouco esforço em tempo de consolações, e falar do egoísmo espiritual dos meus servidores diante do prazer espiritual. Estes últimos, com muito amor-próprio, às vezes se detêm na procura do prazer e não reconhecem seja minha caridade, seja onde estão seus pecados. Por fim, achei bom falar da ilusão do diabo, à qual se pode cair sob a responsabilidade do homem se ele não tiver discernimento. Ocupei-me de tais assuntos unicamente para que tu e meus servidores sejais virtuosos por causa do amor por mim. Estes ditos enganos acontecem com aqueles que me amam imperfeitamente, com aqueles que procuram o dom, não o doador. Quem vive na cela do autoconhecimento e se aplica a ir além do amor imperfeito, acolhe-me com carinho e suga em meu coração o doce alimento da mensagem de Cristo crucificado.
A alma que chegou ao terceiro estado - de amor-amizade e de amor filial - já não me ama interessadamente. Comporta-se como amigo íntimo. O amigo verdadeiro, ao receber um presente, olha primeiro para o coração e o amor do doador; depois examinará o objeto e o conservará como recordação. Esta é a atitude de quem chegou ao terceiro estado, o do amor perfeito; quando lhe concedo favores, não fica a pensar primeiro neles; seu pensamento se fixa na bondade do doador. Querendo evitar que os homens agissem diversamente, providenciei a identificação entre o dom e o doador, unindo a natureza divina com a humana e dando-vos meu Filho, o qual é uma só coisa comigo. Graças a tal união, não podeis deter-vos no dom sem ao mesmo tempo olhar para o doador, que sou eu.
Considera, pois, com que amor deveis desejar o dom e o doador. Fazendo assim, estareis no amor puro, desinteressado, não mercenário; estareis continuamente na cela do autoconhecimento. 



  
  



























quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

CATECISMO SOBRE AS PRERROGATIVAS DA ALMA PURA

CATECISMO SOBRE AS PRERROGATIVAS DA ALMA PURA
SÃO JOÃO MARIA VIANNEY (CURA D'ARS).

Não há nada tão belo quanto uma alma pura! Se o compreendêssemos, não poderíamos perder a pureza. A alma pura é desprendida da matéria, das coisas, da terra, de si mesma... É por isto que os santos maltratavam o seu corpo; é por isto que não concediam o que lhe era necessário, nem sequer levantar-se cinco minutos mais tarde, aquecer-se, comer alguma coisa que lhe desse prazer... Aí está! O que o corpo perde, a alma ganha, o que o corpo ganha, a alma o perde.
A pureza vem do Céu; há que pedi-la a Deus. Se a pedimos, alcançá-la-emos. É preciso termos bem cuidado de não perdê-la. Devemos fechar o nosso coração ao orgulho, à sensualidade e a todas as demais paixões...como quando se fecham as portas e as janelas para que ninguém possa entrar.
Que alegria para o anjo da guarda encarregado de conduzir uma alma pura!...Meus filhos, quando uma alma é pura todo o Céu a olha com amor!...
As almas puras formarão círculo em torno de Nosso Senhor. Quanto mais puro tiver sido na terra, tanto mais perto de Deus se estará no Céu.
Quando o coração é puro, não se pode deixar de amar, porque se tornou a achar a fonte do amor, que é Deus. "Felizes, diz Nosso Senhor, os que têm coração puro, porque verão a Deus!".
Meus filhos, não se pode compreender o poder que uma alma pura tem sobre Deus. Não é ela que faz a vontade de Deus, é Deus que faz a vontade dela. Vedes Moisés, aquela alma tão pura! Quando Deus queria punir o povo judeu, dizia-lhe: "Não me rezes, porque a minha cólera explode contra esse povo". Não obstante, Moisés rezava, e Deus poupava o seu povo; deixava-se dobrar, não podia resistir à oração daquela alma tão pura. Ó meus filhos! Uma alma que nunca foi manchada por esse maldito pecado alcança do bom Deus tudo o que quer.
Para conservar a pureza, há três coisas: a presença de Deus, a oração e os sacramentos. Há ainda a leitura dos livros santos; esta nutre a alma.
Como é bela uma alma! Nosso Senhor fez ver uma a Santa Catarina; esta achou-a tão bela que disse: "Senhor, se eu não soubesse que há um só Deus, julgaria que fosse outro!" A imagem de Deus reflete-se em uma alma pura como o sol n'água.
Uma alma pura é a admiração das três pessoas da Santíssima Trindade. O Pai contempla a sua obra: "Eis aí a minha criatura!...O Filho, o preço do seu sangue.
Conhece-se a beleza de um objeto pelo preço que ele custou... O Espírito Santo habita nela como em seu templo.
Conhecemos ainda o preço de nossa dignidade, devemo-nos lembrar com frequência do Céu, do Calvário e do Inferno.
Se compreendêssemos o que é ser filho de Deus, não poderíamos fazer o mal, seríamos como anjos na terra. Sermos filhos de Deus! Ó bela dignidade!...
É alguma coisa de belo termos um coração e, por mais pequeno que ele seja, podermo-nos servir dele para amar a Deus! Como é vergonhoso para o homem descer tão baixo, ele que Deus colocou tão alto!
Quando os anjos se revoltavam contra Deus, esse Deus tão bom, vendo que eles não podiam mais fruir da felicidade para a qual os havia criado, fez o homem e este pequeno mundo que nós vemos, para alimentar-lhe o corpo. Havia, porém, que lhe alimentar a alma, e como nada de criado pode alimentar a alma, que é espírito, Deus quis dar-se ele próprio por alimento.
Mas a grande desgraça é que descuramos de recorrer a essa divina comida, para atravessarmos o deserto desta vida. Como uma pessoa que morre de fome ao lado de uma mesa bem servida, há pessoas que levam cinquenta, sessenta anos sem alimentar a própria alma!
Oh! Se os cristãos pudessem compreender esta linguagem de Nosso Senhor que lhes diz: "Apesar de tua miséria, eu quero ver de perto essa bela alma que criei para mim. A fiz tão pura, que só meu corpo pode alimentá-la".
Nosso Senhor sempre distinguiu as almas puras. Vede São João, os discípulo amado, que repousou sobre o seu peito!... Santa Catarina era pura; por isso passeava muitas vezes no Paraíso. Quando morreu, os anjos tiraram-lhe o corpo e levaram-no para o Monte Sinai, lá onde Moisés recebera os mandamentos da lei. Deus fez ver por esse prodígio que uma alma pura lhe agradável, merece que mesmo seu corpo, que lhe participou da pureza, seja sepultado pelos anjos.
Deus contempla com amor uma alma pura, concede-lhe tudo quanto ela pede. Como haveria Ele de resistir a uma alma que só vive para Ele e n'Ele? Ela procura-O, e Deus se lhe mostra; chama-O, e Deus vem; faz uma coisa só com Ele; acorrenta-Lhe a vontade. Uma alma pura é onipotente sobre o coração tão bom de Nosso Senhor.
Uma alma pura é ao pé de Deus como um filho ao pé da mãe: acaricia-a, beija-a, e a mãe lhe retribui suas carícias e seus beijos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 1)

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 1)

18.2 - A caminhada para o amor amizade.
Vês assim a que alturas chega o homem que atingiu o amor-amizade.Depois de ultrapassar o primeiro degrau, os pés de Cristo crucificado, atinge o segredo do coração, isto é, o segundo degrau, conforme representei o corpo de meu Filho.
Disse antes (16.1) que os degraus figuravam as três faculdades; agora mostro como significam (também)
as três fases pelas quais passa o homem. Mas antes de ocupar-me do terceiro degrau - que é o da boca de Cristo - quero explicar-te qual a caminhada para o amor-amizade (18.2), como é vivido tal amor (18.3) e quais são os sinais reveladores da sua presença (18.4).
Relativamente ao modo como se chega ao amor-amizade e filial, dá-se da seguinte maneira: inicialmente imperfeito, o homem vive no amor servil; com a perseverança e esforço, chega ao amor interesseiro das consolações (espirituais) no qual se compraz olhando-me como algo útil para si mesmo. Tal é o roteiro para quem quer chegar ao amor-amizade e filial. Este último é o amor perfeito; com ele alcança-se a herança do reino. O amor filial inclui o amor-amizade; nesse sentido se passa do amor-amizade ao amor filial. Mas qual é a estrada? Vou dizê-lo.
Toda perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se de humildade; a humildade nasce do autoconhecimento e da vitória sobre o egoísmo da sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário pois, perseverar na cela do autoconhecimento. Nesta cela o homem conhecerá o meu perdão através do sangue de Cristo e atrairá sobre si pelo amor a minha caridade, procurará destruir em si toda má vontade espiritual e temporal. Fará como os apóstolos e Pedro que, depois da negação, chorou. Era um pranto imperfeito, que imperfeito permaneceu durante os quarenta dias que precederam a Ascenção. Depois que Jesus subiu ao Céu em sua humanidade, Pedro e os demais (apóstolos) fecharam-se no Cenáculo, esperando a vinda do Espírito Santo segundo a promessa feita por meu Filho. Ali permaneceram com as portas fechadas, cheios de medo, como acontece a todo homem antes de chegar ao verdadeiro amor. Ficaram perseverantes na oração humilde e contínua, até receber a plenitude do Espírito Santo. Então, livres do temor, passaram a seguir e pregar Cristo crucificado.
Também o homem que deseja atingir tal perfeição, por medo do castigo começa a chorar depois de abandonar o pecado mortal pelo arrependimento; em seguida, eleva-se à consideração de minha misericórdia, e nisto encontra consolação e prazer. É algo ainda imperfeito. Para que se encaminhe à perfeição, após os "quarenta dias" - que são os dois primeiros estados - aos poucos vou me afastando da alma quanto às consolações, sem retirar-lhe a graça.
Foi quanto Jesus revelou aos discípulos, ao dizer: "Irei e voltarei a vós" (Jo 14,27). Tudo quanto ele dizia a eles em particular, afirmava-o igualmente para todos os seus contemporâneos e às gerações futuras. "Irei e voltarei a vós", disse ele; e o fez. Voltou, quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. De fato, já te disse (12.5) que o Espírito Santo não vem sozinho, mas com meu poder, com a sabedoria do Filho e com a própria clemência, pois ele procede do Pai e do Filho.
Pois bem, afirmo-te que, para libertar o homem da imperfeição (do amor servil e interesseiro), afasto-me da alma quanto às consolações. Quando se achava no pecado mortal, o pecador estava longe de mim; por sua culpa, eu me afastara dele quanto à graça. Havia-se fechado a porta do desejo por culpa sua, sem responsabilidade do sol divino. Ao tomar consciência das próprias trevas, ele abre as janelas, "vomita" a podridão do pecado na santa confissão, e então, pela graça, volto à sua alma. Se me afasto, é quanto às consolações, não quanto à graça, no modo explicado acima. Ajo assim para que a pessoa se humilhe, procure-me com empenho, seja provada quanto à fé e se torne prudente. A tais alturas, se o cristão me amar desinteressadamente, com fé viva e desapego de si, alegrar-se-á nas adversidades, achando-se indigno de viver no sossego e descanso da mente. Mas este já é o segundo assunto dos três que falei antes (18.2).
   
18.3 - Como se vive o amor-amizade

18.3.1 - A vigília de oração

Eis o que faz a pessoa que chegou (ao amor-amizade): Ao perceber que me ausentei quanto às consolações, não cai em desânimo. Persevera humildemente no esforço pelo autoconhecimento, certa de que o Espírito Santo virá. Como o espera? Sem ociosidade, em contínua vigília de oração. Será uma vigília exterior e interna, no sentido de que a inteligência não se feche, mas reflete sob a luz da fé. Assim a pessoa evita as distrações do coração, medita sobre a bondade do meu amor, compreende que nada mais desejo que sua santificação. Disso é garantia o sangue do meu Filho. Como o pensamento está vigilante no conhecimento de mim e de si, a alma ora continuamente. É a "oração contínua", a oração da vontade santa e boa. A pessoa permanece também na oração exterior, feita nos tempos determinados conforme as prescrições da santa Igreja. Tal é o comportamento do homem que da imperfeição chegou à perfeição!
Para que a alma atingisse esse grau, dela me afastara quanto às consolações. Outro motivo da ausência destas consolações é este: para que o homem, vendo-se na secura, sofra, perceba a própria debilidade, instabilidade e falta de perseverança; em outras palavras, veja e conheça o próprio defeito, descubra em si a raiz do egoísmo. É para que a pessoa se conheça e se supere, suba à cadeira da própria consciência, corrija todo sentimento falso, destrua as raízes do egoísmo com o desapego de si e o amor pelo bem.
É bom que compreendas o seguinte: qualquer imperfeição e perfeição são adquiridas e manifestadas, seja em mim como no próximo; compreendem-no os simples, que muito amam as pessoas no espírito. Se acolhem o amor por mim desinteressadamente,, desinteressadamente também amam o próximo. Pode-se comparar a uma vasilha: retirada cheia de uma fonte, se alguém dela beber, ficará vazia; mas se alguém enquanto bebe a conserva na fonte, jamais se esvaziará, estará sempre cheia. Assim, o amor humano e espiritual pelo próximo, deve realizar-se em mim, sem outros interesses.
Eu vos peço que me ameis com a mesma caridade com que vos amo. Tal coisa não podeis realizar diretamente a meu respeito, pois eu vos amei antes de ser amado. Qualquer ato de amor vosso de amor por mim é devido, não gratuito; sois obrigados a me querer bem. Eu amo-vos espontaneamente, sem qualquer obrigação. Não, relativamente a mim não tendes a possibilidade de cumprir o amor que peço! Por isso, dei-vos um meio: o próximo. Com referência a ele podeis fazer o que é impossível para comigo, podeis amá-lo gratuitamente, sem interesses pessoais. Ora, considero feito a mim o que fazeis para os homens. Foi isso que meu Filho deu a entender a Paulo que perseguia os cristãos, dizendo-lhe: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9,4); meu Filho considerava realizada contra mim a perseguição feita contra os cristãos.
Há de ser desinteressado o amor pelo próximo; deveis amá-lo com a mesma caridade que me amais. Sabeis como uma pessoa percebe que seu amor espiritual pelos outros é imperfeito? Se fica triste ao notar que aquele que é amado não corresponde com a mesma intensidade de amor, evita sua companhia, não procura agradar, demonstra maior atenção para com outros. Semelhante tristeza evidencia que a caridade por mim ainda é fraca; mostra que o cristão ainda está "bebendo" fora de mim, mesmo que seu amor provenha da minha caridade. Quando o amor para comigo é imperfeito, imperfeita se mostra a caridade para com o próximo espiritualmente amado. A razão de tudo é o egoísmo, cuja raiz ainda não foi arrancada. E eu permito essas coisas, para que o cristão reconheça sua imperfeição.
A ausência de consolações acontece para que o homem se feche na cela do autoconhecimento, lugar onde se adquire a perfeição. quando retorno com as consolações, darei maior luz e conhecimento da verdade, de modo que considerará como uma graça poder destruir o egoísmo; já não cessa de podar a vinha da própria alma, de arrancar os maus espinhos que são os maus pensamentos, de assentar as virtudes no sangue de Cristo, conforme as encontrou ao seguir as pegadas de sua ponte. Acima já ensinei (12.3), se bem recordas, que as pedras da ponte-mensagem de Cristo eram as suas virtudes, cimentadas com sangue, pois é do sangue que elas retiram a vida. Quando o homem penetra e caminha na mensagem de Cristo, passa a amar a virtude e a odiar o pecado com grande perseverança, separa-se inteiramente da mundanidade e fecha-se na cela do autoconhecimento.
 Por que se fecha? Porque conhece a própria imperfeição; também pelo desejo de atingir o amor desinteressado e livre, pois sabe perfeitamente que não existe outro modo de consegui-lo; desse modo espera com fé viva meu retorno com maior infusão de graça.
Em que consiste a fé viva? Consiste na prática perseverante das virtudes, em não voltar atrás por motivo algum, em não deixar a oração jamais - exceto por obediência ou caridade -, pois nenhuma outra razão existe. Digo isto porque muitas vezes, durante o tempo reservado à oração, o demônio se apresenta através de muitas tentações e dificuldades, mais do que acontece em outras ocasiões. Para que o orante sinta tédio na oração, sugere-lhe: "Tua súplica para nada serve, pois quando oras não deverias preocupar-te senão com aquilo que dizes". Sua intenção é cansar a pessoa, confundi-la e fazer com que abandone o exercício da oração. No entanto, a prece é a arma com que o homem se defende de todos os inimigos, se realizada com amor, espontaneidade e fé.
Filha querida, convence-te de que é na oração contínua, fiel e perseverante que todas as virtudes são adquiridas. Mas é preciso perseverar, nunca a deixar: nem por ilusão do diabo, nem por fraqueza pessoal, quais sejam os pensamentos e impulsos íntimos; nem por "conselhos" alheios. O demônio frequentemente se põe nos lábios das pessoas, levando-as a afirmativas que destroem a oração. Tudo isso há de ser vencido perseverantemente. Como é agradável ao orante e a mim a prece feita na cela do autoconhecimento. Ali o homem crê e ama na abundância do meu amor, que em meu Filho tornou-se visível e provada no sangue. Sangue que inebria a alma, reveste-a com chamas do amor divino, eucaristicamente a alimenta. Foi na despensa da hierarquia eclesiástica que eu guardei o corpo e sangue do meu Filho, perfeito homem e perfeito Deus, pois entreguei aos sacerdotes a chave do sangue a fim de que o distribuíssem. Já te falei sobre esta despensa (12.3), construída sobre a ponte-Cristo para alimentar e fortificar os viandantes e peregrinos que caminham segundo a mensagem de meu Filho, impedindo que morram de fome. Tal alimento fortifica de acordo com o amor de quem o recebe, seja sacramentalmente, seja espiritualmente.
Sacramentalmente, na comunhão eucarística; espiritualmente, ao se comungar pelo desejo da eucaristia ou meditando-se a paixão de Cristo crucificado. Esta última é uma comunhão de amor no sangue, que por amor foi derramado; nela a pessoa inebria-se, inflama-se, fica saciada no desejo santo, cheia de amor por mim e pelos homens. Mas, onde se alcança tudo isso? Na cela do autoconhecimento e na oração, quando o homem deixa de ser imperfeito, como aconteceu com os discípulos e Pedro ao atingirem a perfeição. Quais são os meios necessários? A perseverança e a fé.
Não creias que para alcançar tamanho fervor e tal alimento espiritual, baste a oração vocal. Muitos pensam que seja assim. Sua oração é constituída mais de palavras que de amor. Parece que a nada mais aspiram que recitar muitos salmos e pai-nossos! Quando atingem um determinado número, dão-se por satisfeitos. Para eles, a finalidade da oração está na recitação verbal. Não haveria de ser assim. Nada praticando além disso, tais pessoas pouco aproveitam e pouco me agradam.
Dirás: "É preciso então abandonar tal oração, mesmo que nem todos pareçam atraídos pela oração mental?" Não, mas é preciso progredir. Sei que o homem, antes de chegar à perfeição é imperfeito. É normal que sua oração comece deficiente. Durante tal fase imperfeita, o orante deverá ocupar-se na prece vocal para não cair na inatividade. Mas, mesmo então, sua oração de palavras não deve ser feita sem a oração do espírito. Enquanto pronuncia as palavras, eleve seu pensamento até mim, considere seus defeitos em geral, medite sobre a paixão de meu Filho. No sangue de Cristo encontrará a plenitude do amor e a remissão dos pecados. Ao tomar consciência dos próprios defeitos, reconhecerá minha caridade e será ajudado a perseverar na oração.
Não desaconselho pensar nos pecados um por um, para que tal consideração não contamine a mente com lembranças impuras. O que não quero é que se faça unicamente a recordação dos pecados, em particular ou em geral, sem a lembrança da paixão de Cristo e da imensidade do meu perdão, para evitar a perplexidade interior. Se não forem acompanhados pelo pensamento da paixão, o autoconhecimento e a reflexão sobre os próprios pecados, confundem a alma. Neste caso o demônio estaria presente e, sob pretexto de falso arrependimento e desprezo das culpas, levaria a pessoa à condenação. Além disso, por falta de confiança na minha misericórdia, corre-se o risco de cair no desespero, um dos enganos a que o demônio pode conduzir meus servidores. Para vossa utilidade, portanto, se quiserdes fugir das maquinações do diabo e agradar-me, conservai o coração aberto ao meu incomensurável perdão. O diabo orgulhoso não tolera um espírito humilde; não suporta a imensidade do meu amor, no qual a pessoa humilde se apóia. Se bem te lembras, certa vez o demônio quis aterrorizar-te com semelhante confusão interior. Afirmava ele que tua vida era uma falsidade, que não havias cumprido a minha vontade. Auxiliada por mim, agiste como realmente deverias agir, pois nada recuso a quem me implora. Com humildade, tu te apoiaste na minha misericórdia e disseste: "Confesso ao criador que transcorri a vida em trevas! Refugio-me, porém, nas chagas de Cristo crucificado e lavo-me no seu sangue. Destruirei desse modo minhas iniquidades e com amor hei de alegrar-me em meu criador". Então o demônio retirou-se. Em outra batalha ele quis levar-te ao orgulho e dizia: "És perfeita, agradável a Deus. Não é necessário que te mortifiques mais, nem que chores ainda os teus pecados". Naquela ocasião eu te iluminei e entendeste o caminho a seguir, o da humildade, respondendo: "Pobre de mim! João Batista jamais pecou, foi santificado no seio materno, e no entanto penitenciou-se muito. Eu, ao invés, cometi tantas faltas e ainda não comecei a reconhecê-las com lágrimas e verdadeira contrição; ainda não tomei consciência de quem é Deus, o ofendido, nem de quem sou eu, a pecadora". Não tolerando esse ato de humildade e de confiança na minha misericórdia, o demônio disse: "Maldita sejas tu, pois de nenhum modo consigo vencer-te! Se te rebaixo ao desespero, tu te elevas à misericórdia; se te engrandeço pela vaidade, tu te rebaixas até o inferno pela humildade e aí me persegues. Não voltarei mais; tu combates com a lança da caridade".
Por conseguinte, o orante deve controlar o autoconhecimento mediante a consciência da minha misericórdia, e vice versa. Agindo assim sua oração vocal será útil a ele e agradável a mim. Se perseverar em tal exercício, passará da oração vocal imperfeita à oração do espírito, a perfeita. Ao contrário, se sua preocupação continuar apenas na quantidade de preces, jamais o conseguirá. O mesmo aconteceria se abandonasse a oração mental pela vocal. Pois existem pessoas tão ignorantes que, indo orar, fazem a intenção de recitar determinadas orações vocais; nessa ocasião eu as visito de uma forma ou de outra, conforme o meu agrado ou seus desejos anteriores. Dou-lhes, por exemplo, arrependimento dos pecados; recordo-lhes meu amor; torno presente em suas mentes a pessoa do meu Filho sob variadas maneiras. Mas tais pessoas, para completar aquele número de orações, desprezam minha visita, com remorso de abandonar quanto começaram... Não deveriam tomar essa atitude! Logo que a pessoa percebe minha visita, nas modalidades de que falei, deve deixar a oração vocal. Mais tarde, uma vez cessada a oração do espírito, e, se dispuser de tempo, poderá retomar aquilo a que se propusera fazer. Na falta de tempo, despreocupe-se, não fique triste, não se perturbe. A única exceção se dá para o Ofício Divino (Liturgia das Horas) que os clérigos têm obrigação de recitar sob pena de pecado. É obrigação dos clérigos dizê-lo até a morte. Quando os clérigos sentirem tais visitas na hora do Ofício, conservem o espírito elevado no amor e tomem a decisão de recitar o ofício no momento ou depois, mas não devem faltar à própria obrigação.
Em qualquer outra oração, a pessoa deve começar pela vocal, passando depois à mental. Faça-o logo que sentir o espírito bem disposto. Tal maneira de agir conduzirá o orante à perfeição do amor. Não se despreze, pois, a oração vocal, qualquer que seja ela. Siga-se a orientação dada. Quem assim fizer, com esforço e perseverança, chegará à oração verdadeira e à comunhão espiritual na paixão de Cristo. Neste sentido eu disse antes (18.3.1) que alguém comunga espiritualmente no corpo e sangue de Cristo sem receber o sacramento da eucaristia. Tal pessoa comunga no amor, fato que acontece na oração em maior ou menor intensidade, de acordo com o amor do orante. Quem age com pouca prudência cristã, pouco achará; quem age sabiamente, muito encontrará.Quanto mais o homem desvencilhar sua afeição e prendê-la a mim, mais me conhecerá, mais me amará, mais me experimentará. Como vês, não é pela quantidade de palavras que se chega à oração perfeita, mas pelo amor e conhecimento de mim e de si mesmo, cada um desses conhecimentos completando o outro. 
A oração vocal e mental hão de ser praticadas contemporaneamente, pois andam juntas como a vida ativa e a contemplativa. A oração vocal e mental podem ser entendidas de diversas maneiras. Já falei do desejo santo; ele constitui a oração contínua e consiste na posse de um amor reto e santo. Quando esse desejo santo aparece no ambiente e horário da prece, temos a oração vocal (com desejo santo) obrigatória; outras vezes, será a oração vocal (com desejo santo) espontânea. Será uma oração contínua, adaptada às necessidades da salvação do próximo e ao estado de vida do orante. Todos os homens devem trabalhar em prol da salvação dos outros no próprio estado de vida, por obediência ao princípio do amor santo. Os ensinamentos e as atividades que alguém realize constituirão uma oração em atos, supondo-se que tal pessoa cumpra suas orações obrigatórias. Tudo o que fizer além desta oração obrigatória, seja em favor do próximo como de si mesma, será oração. Como dizia o glorioso apóstolo Paulo, não pára de orar quem não cessa de praticar o bem. Por isso te disse que a oração se realiza de diversas maneiras, seja a vocal como a mental; quando realizada no amor, constitui a oração contínua, pois a caridade é oração.
Desse modo acabei de explicar-te como se chega à oração mental. É preciso exercitar-se com perseverança na oração, passando da vocal para a mental quando "visito" a alma. Disse como é a oração comum e a espontânea,bem como a oração da vontade santa e da atividade em favor de si mesmo ou dos outros, realizada por amor fora dos momentos reservados para a prece.