terça-feira, 24 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE V



2.8 - É na dificuldade que se provam as virtudes  

   Acabei de explicar como, sendo útil ao próximo, o homem manifesta seu amor por mim. Agora vou dizer como cada pessoa mostra possuir a paciência ao ser injuriada pelos outros; a humildade, quando se acha diante do orgulhoso; a fé, diante do infiel; a esperança, na presença de quem nada espera; a mansidão e a benignidade, ante o irascível. Todas estas virtudes revelam sua existência e são exercitadas no próximo, da mesma forma como é nele que os maus cometem seus pecados.
   Vê bem. É diante da soberba que aparece a humildade. O homem humilde vence o orgulho, pois o orgulhoso é incapaz de prejudicar quem é humilde. Do mesmo modo o descrente - que não me ama, nem em mim espera - não faz diminuir a fé do homem fiel ou a esperança daqueles que a possuem no coração por meu amor. Ao contrário, até as faz crescer e manifestar-se mediante o amor altruísta. Meu servidor, percebendo que se trata de um descrente ou desesperado que não confia em mim, nem nele - pois aquele que não me ama, também não acredita em mim, não confia em mim, mas deposita a sua afeição na própria sensualidade - meu servidor não deixa de amar verdadeiramente tal pessoa, certo de que ainda encontrará em mim a salvação. Como vês, o servidor fiel comprova sua fé na descrença e na desesperança alheia. Em casos semelhantes e em qualquer outro que ocorra, ele demonstra possuir a virtude.
   Assim, a virtude da justiça não diminui diante das injustiças; evidencia-se até, pois a justiça se revela na paciência. Também a benignidade e a mansidão são evidenciadas pela doce paciência no tempo do ódio; e o amor caridoso, todo cheio da sede e desejo da salvação alheia, torna-se visível diante da inveja, do desprezo e ódio. Mais ainda! Além de provar que são virtuosas, pagando o mal com o bem, tais pessoas frequentemente atiram brasas de amor, as quais consumirão a raiva e o rancor do coração do irascível, levando-o a passar da ira à benevolência. Tudo isso acontece, graças à caridade e perfeita paciência daquele que suporta a raiva e demais defeitos do malvado. Relativamente às virtudes da fortaleza e perseverança, elas são comprovadas mediante os longos sofrimentos, as ofensas, as difamações daqueles que procuram afastar o servidor fiel do caminho verdadeiro, seja com atrativos, seja com ameaças. Quando o servidor fiel possui a fortaleza interior, mostra-se realmente forte e perseverante, dando prova disso no contato com os homens. Quando alguém não resiste no tempo das contradições, é sinal de que não possuía uma virtude verdadeira.

2.9 - O cristão precisa de humildade, caridade e discernimento

   Tais são as ações santas e agradáveis, que exijo dos meus servidores, ou seja, as virtudes internas devidamente comprovadas. Eu não me contento com atos só exteriores, corporais, realizados em diferentes e numerosas mortificações, com atos que na realidade são apenas meios para se atingir a virtude. Tais penitências pouco me agradam, se não se fazem acompanhar das virtudes internas, indicadas acima. Digo mais: se uma pessoa se penitencia sem discernimento, pondo todo o seu afeto na mortificação enquanto tal, até impedirá sua perfeição. Quem se penitencia há de valorizar o amor, desprezar a si mesmo, ser humilde, paciente; há de ter todas as virtudes, deve alimentar o desejo da minha glória e a salvação dos homens. Essas virtudes mostrarão que seu egoísmo morreu e que perenemente destrói a sensualidade através do amor pela virtude.
   É com tal discernimento que se deve praticar a penitência. Em outras palavras: é mister dar mais importância às virtudes que à mortificação. Esta última será um meio para aumentar as virtudes e será feita de acordo com a necessidade, na exata medida das forças pessoais. Aqueles que consideram as mortificações como essencial, obstaculizam a própria perfeição. Seria esta uma atitude tomada sem a iluminação do autoconhecimento e sem a exata consideração da minha bondade; estaria fora do reto caminho. Seria uma atitude sem discernimento, que valoriza o que eu não valorizo, que não despreza o que eu desprezo. O discernimento consiste num exato conhecimento de si e de mim; o discernimento enraíza-se nesse autoconhecimento. É como um rebento intimamente unido à caridade.
   Qual árvore de muitos galhos, a caridade possui numerosos filhos. Como as árvores recebem a vida de suas raízes enterradas no solo, assim a caridade se nutre na humildade, e o discernimento é um dos filhos ou rebentos da caridade. Não existindo este solo da humildade, o discernimento não seria verdadeira virtude, nem produziria frutos de vida. A humildade brota do autoconhecimento e o discernimento, como afirmei, consiste num real conhecimento de si e de mim, que faz o homem dar a cada um o que lhe pertence. Quanto a mim, dará glória, louvor e será grato pelas graças e favores recebidos; quanto a si mesmo, atribuirá o que julgar ter merecido, reconhecerá que nada é por si mesmo, consciente de que de mim recebeu gratuitamente o ser, agradecer-me-á por toda outra perfeição acrescentada ao ser. Julgar-se-á mesmo ingrato diante dos numerosos favores, negligente no aproveitamento do tempo e das graças, digno de castigo. O discernimento, enfim, ao fundamentar-se no humilde autoconhecimento, conduz à luta contra os pecados pessoais.
   Homem sem humildade é homem sem discernimento. Seu agir baseia-se no orgulho, da mesma forma como todo discernimento vem da humildade. Tal pessoa comporta-se ainda, como um ladrão, enquanto rouba minha glória e a atribui a si mesmo, no desejo de engrandecer-se. Em sentido contrário, atribui a mim o que é absolutamente seu; queixa-se e murmura contra os misteriosos desígnios que realizo em sua vida e na alheia; em tudo acha motivo de oposição a mim e ao próximo.
   Diversamente se comporta quem possui o discernimento. Depois de ter reconhecido como meu o que me pertence, cumpre para com os outros a grande dívida do amor e da oração humilde e contínua, como é seu deve; ensina, dá bom exemplo, auxilia materialmente segundo as necessidades. Disto já falei antes. Quem tem discernimento, qualquer que seja seu estado de vida - patrão, prelado ou súdito - sempre trata o próximo com amor. Caridade e discernimento estão intimamente entrelaçados; ambos se enraízam no solo da verdadeira humildade, sendo esta o fruto do autoconhecimento.
   Sabes qual é a relação mútua dessas três virtudes?
   É como se tivesse no chão um círculo, do qual brotasse um tronco de árvore com um rebento ao lado. O tronco alimenta-se da terra contida no círculo e morreria, não daria frutos, se estivesse do lado de fora. Entende agora a comparação. A alma é uma árvore nascida para o amor; sem ele não vive. Privada do amor divino da caridade, não produz frutos de vida, mas de morte. É mister que a raiz desta árvore brote no círculo do autoconhecimento. Este círculo está em comunhão comigo. Como ele, não tenho princípio nem fim. Quando te encontras dentro de uma circunferência, vais girando, e não achas nem início, nem termo. Igualmente o conhecimento de si e de mim realiza-se no terreno da humildade e possui a amplidão da circunferência do conhecimento do meu ser. Sem tal característica, o autoconhecimento não formaria um círculo sem princípio nem fim; começando por conhecer-se, acabaria na confusão, longe de mim. Em conclusão, é no terreno da humildade que se alimenta a caridade e com ela brota o rebento do discernimento verdadeiro.
   Medula ou cerne dessa árvore é a paciência. Esta virtude constitui o sinal externo de que eu estou numa alma e ela em mim.
   Plantada com imenso amor, semelhante árvore produz virtudes perfumadas, como flores numerosas e variegadas; produz o fruto da gratidão e da bondade para com os outros homens, pelo esforço dos meus servidores, para comigo; essa árvore produz o perfume da glória e do louvor. Assim, o homem realiza a finalidade para a qual o criei, ou seja, atinge a meta final, eu mesmo, vida permanente que jamais lhe será arrebatada sem o seu consentimento.
   Como vês, os frutos dessa árvore nascem do discernimento, na união comigo.

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