quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 2)

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 2)

18.3.2 - Desapego das consolações.

Deve o cristão entusiasmar-se varonilmente pela oração que é uma verdadeira mãe. Isto acontece quando ele se fecha na cela do autoconhecimento, depois de atingir o amor-amizade e o amor filial. Quem não percorre tais etapas, permanecerá sempre na tibieza e na imperfeição, amando a mim e ao próximo por interesses pessoais, na procura de consolações. Sobre tal amor imperfeito quero discorrer agora, sem ocultar-te uma ilusão decorrente desse apego às consolações.
Desejo que o saibas: o servidor que me ama na imperfeição procura mais as consolações sensíveis que a minha divindade. É a atitude da pessoa que se perturba quando desaparecem o prazer espiritual e a tranquilidade de vida. Muitos vivem virtuosamente quando estão na prosperidade; desorientam-se na prática da virtude se lhes mando alguma dificuldade. Quando alguém lhes pergunta: Por que está perturbado?", respondem: "Porque estou em tal ou tal contrariedade; parece-me que estou perdendo o pouco de bem que faço. Já não tenho aquele entusiasmo e aquele amor de antes, por causa desta dificuldade. Acho que, na tranquilidade anterior, tirava mais proveito que agora.".
Enganam-se tais pessoas relativamente àquela "tranquilidade anterior". Não é a contrariedade que lhes traz menor amor e menor dedicação. Em si mesmas, as ações possuem idêntico valor na aridez de espírito e no fervor. Aliás, com a aridez as ações podem até valer mais, se as pessoas tivessem paciência. Mas elas se perturbam, pelo fato que antes sentiam maior prazer. Na verdade, antes me amavam pouco e viviam com a consciência tranquila na prática de pequenas boas obras. Retirado o ponto de apoio, crêem ter perdido o sossego do próprio agir. Com tais pessoas acontece como ao jardineiro, satisfeito no seu trabalho por causa do prazer que sente. Labutar no jardim parece-lhe um descanso; estar no meio das flores, uma satisfação. De fato, ele se alegra mais com as flores do que com o trabalho. Se lhe retirarem as flores, o prazer acabará. Também aquelas pessoas! Se sua principal alegria se concentrasse na prática do bem, não cairiam na perturbação. Alegrar-se-iam até, pois quem realmente deseja uma coisa jamais poderá ser impedido de realizá-la; mesmo que a privem da satisfação que acompanha sua atividade, como no caso das flores. Enganam-se essas almas colocando o alicerce de suas atividades nas consolações, pois dizem: "Antes de entrar nesta aridez, eu agia melhor e com mais prazer; a prática do bem me ajudava. Agora já não me favorece, não sinto mais gosto".
É errado tal modo de pensar e falar. Nada diminuiria em tais almas, se elas se comprazessem no agir virtuosamente por causa da virtude em si, até acresceriam seus esforços. Na realidade agem por egoísmo e então tudo se acaba. Tal é o engano em que caem muitos na vida virtuosa, proveniente das consolações sensíveis.
Costumo recompensar toda boa ação e com maior ou menor liberalidade conforme a medida do amor de quem a pratica; por isso, concedo consolações espirituais aos meus servidores imperfeitos, durante a oração. Ajo de tal forma, não para que apreciem tais satisfações erroneamente, isto é, atribuindo maior valor ao dom que ao doador, que sou eu. Meu desejo é que tomem consciência do meu amor e da própria indignidade, deixando o prazer em segundo plano. O engano consistirá em agir diversamente.     

18.3.2.1 - A rotina das consolações.

Um primeiro engano consiste na procura de determinada satisfação espiritual para nela se comprazer. Tendo-a experimentado antes, a pessoa começa a agir sempre do mesmo jeito para obter idêntico prazer. Na verdade, eu não sigo sempre as mesmas estradas, como se fosse coagido a dar consolações e gostos. Concedo-as diversificadamente segundo meu beneplácito e as necessidades humanas. Mas há gente sem discernimento, que continua a procurar a consolação naquele modo, com a pretensão de impor leis ao Espírito Santo. Atitude errada! Deveriam isto sim, caminhar varonilmente pela ponte-mensagem de Cristo crucificado, aguardando os dons na modalidade, tempo e lugar que eu quisesse enviar. Se nada concedo, faço tal coisa por amor, nunca por maldade. Quero que os homens me procurem por mim mesmo, não por motivo das consolações que propicio; quero que acolham humildemente meu amor sem pensar muito nas satisfações. A atitude contrária produz sofrimento e perturbação no momento em que faltar a consolação, objeto de tanta preocupação. Tais pessoas querem conforto sob medida; tendo experimentado um prazer espiritual, pretendem repetir a mesma sensação. Alguns são de tal modo ignorantes que, se os visito de um modo diferente, recusam-me! Somente aceitam aquela modalidade costumeira. É um defeito inerente à própria paixão e defeito espiritual em si; é uma ilusão, pois como não pode alguém deter-se num único método, mas haverá de progredir na virtude ou voltar atrás, assim não pode o espírito fixar-se num determinado gozo espiritual por mim concedido, como se minha bondade não pudesse dar outro.
Concedo consolações de diversas maneiras: uma vez será contentamento; outra vez arrependimento que agita interiormente; vezes há que me torno presente na alma sem que ela o perceba, pois faço estar no espírito a pessoa de meu Filho em vários modos: ora sentirá na profundidade da alma grandíssimo prazer, ora nem o perceberá, como se poderia esperar. Realizo todas essas coisas por amor; quero que o homem progrida na humildade, na perseverança; quero ensinar-lhe a não ditar regras (ao Espírito Santo), a não considerar as consolações como uma finalidade. Quero que alicerce em mim sua virtude; que aceite os acontecimentos e meus dons com humildade. Quero que acreditem no seguinte: que concedo as consolações espirituais de acordo com as necessidades da sua santificação e aperfeiçoamento.

18.3.2.2 - O egoísmo espiritual.

Acabo de falar sobre o engano em que caem aqueles que desejam viver interiormente consolados com minha presença. Passo a ocupar-me de uma outra ilusão: a das pessoas que colocam toda sua satisfação na busca das consolações e não socorrem os outros em suas necessidades espirituais ou materiais sob pretexto de virtude. Dizem assim: "Quando vou ajudar os outros, não consigo rezar as preces de horário". Acreditam ofender-me quando não sentem consolação interior. Na realidade enganam-se quanto ao sossego do espírito e ofendem-me muito mais não socorrendo o próximo, de que se de fato perdessem a paz da alma.
É meu desejo que todas as orações, vocais ou mentais, levem a pessoa ao perfeito amor por mim e pelo próximo. Dessa maneira, peca mais quem se descuida do amor pelo outro a fim de orar, do que aquele que, por causa dos outros, deixa de orar. No próximo, o homem sempre me encontra; não, porém, na satisfação pessoal em que me procura. A ausência de ajuda ao irmão, ipso facto faz diminuir a caridade fraterna e o amor por mim. Querendo ganhar, a pessoa sai perdendo. Mas ao "perder", ganha, isto é: ao renunciar ao conforto espiritual no esforço de salvar o próximo, lucra em mim e no próximo; ao prestar serviço ao outro na caridade, experimenta toda a doçura do meu amor. Pelo contrário, sai-se mal quando recusa auxiliar os demais. De fato, um dia ou outro terá que ajudá-lo, por amor ou por dever, seja nas enfermidades do corpo, seja do espírito. Então falo-á de má vontade, com tristeza íntima e remorso de consciência, tornando-se insuportável a si mesmo e aos demais. Em tal ocasião, se alguém lhe perguntar: "Por que estás tristonho?", responderá: "Porque perdi a paz e a tranquilidade de espírito; deixei de fazer muitos atos a que estava habituado e julgo que ofendi a Deus".
A realidade não é essa. Tal pessoa não sabe discernir onde se encontra realmente seu pecado, pois sua preocupação fixou-se na procura de consolações interiores. Oxalá entendesse que o pecado não está na privação do consolo espiritual, nem na ausência de oração quando alguém precisa de auxílio, mas na ausência de amor pelo outro, a quem é preciso ajudar por meu amor. Como vês, o engano consiste no egoísmo espiritual.
Outro tipo de egoísmo existe, semelhante, que pode causar prejuízos ainda maiores. Costumo dar a meus servidores gáudio espiritual e visões. Se alguém unicamente se preocupar na obtenção de tais favores, acabará por cair na amargura e no tédio no momento que notar sua ausência progressiva; cada vez que eu não o der, julgarão que perderam a graça. Já afirmei que costumo visitar e ausentar-me do homem no tocante às consolações - sem prejuízo do estado de graça - a fim de levar a pessoa à perfeição. Em tais circunstâncias, muitos mergulham na tristeza e sentem-se num inferno, porque não mais experimentam os prazeres da mente, substituídos pelo tormento das tentações.
Ninguém deveria ser tão ignorante assim, deixando-se ludibriar pelo egoísmo sem compreender a realidade. É preciso discernir quando estou presente, compreender que sou o sumo bem, aquele que dá a boa vontade no tempo das batalhas! Que não se fique correndo atrás de consolações! Humilhe-se o homem, considere-se indigno de viver no sossego e quietude de espírito. Aliás, é por isso que me afasto. Desejo que a pessoa seja humilde, que tenha consciência da minha caridade, que note a retidão interior que lhe concedo na hora da dificuldade. Quero que beba o leite espiritual não somente por borrifos na face da alma, mas sugando diretamente no coração do meu Filho. Juntamente com tal leite, quero que coma sua carne; que procure consolações no corpo do crucificado, vivendo sua mensagem, que transformei numa ponte que vos conduza até mim.
Eis as razões por que me afasto durante a aridez do espírito. Se os homens caminharem com prudência, não parando estupidamente na procura de consolações, retornarei depois com imensa delícia, força, luz, ardor de caridade. Os que sentirem rebeldia e tristeza pela ausência de consolações, pouco aproveitarão e continuarão em sua tibieza.

18.3.2.3 - O diabo em forma de luz.

Pode acontecer ainda que alguém caia num quarto engano, quando o demônio se apresenta em forma de luz. Costuma ele tentar os homens de acordo com as disposições espirituais que neles encontra. Por tal motivo, ninguém deve desejar satisfações e visões espirituais; aspire-se somente pela virtude. Na humildade, cada um se julgue indigno de tais coisas; se as receber, comporte-se segundo a caridade. O diabo é capaz de mostrar-se numa figura de luz, por vários modos, na alma de quem gulosamente sonha com visões. Umas vezes toma a figura de um anjo, outras vezes a semelhança do meu Filho, outras ainda como se fosse um dos meus santos. Dessa maneira, ele usa o anzol do prazer espiritual para atrair a alma, para prendê-la em suas mãos. A única solução em tais casos, é a humildade, pois o diabo não tolera o homem humilde. Somente a humilde renúncia a qualquer satisfação pessoal evitará que o diabo retenha a alma. Assim mesmo, tal renúncia deve estar acompanhada do amor; não do amor pelo dom, mas pelo doador, que sou eu.
Se me perguntares: "Qual sinal que nos indica que a 'visita' é do diabo e não tua?", respondo: "Se for o demônio em forma de luz, sua presença inicialmente produzirá alegria, mas pouco a pouco ela irá desaparecendo, até transformar-se em tédio, trevas e remorso de consciência. Ao contrário, se for uma visita minha, no começo a pessoa sentirá temor, um temor santo que depois lhe dará alegria, segurança e uma feliz prudência que, refletindo, não duvida. Dir-se-á: "Não sou digno de receber tua visita; como pode ela acontecer?" e projeta-se na imensidade do meu amor, ciente do bem que lhe posso fazer. Não tomo em consideração a indignidade humana, mas a minha bondade. É esta que, pela graça e demais favores, torna o homem apto a receber-me. Não desprezo a afeição com que ele me invoca. Acolhendo-me, diz a alma:"Eis a tua serva; faça-se a tua vontade" (LC 1,38), e ao encerrar a oração em que a visitei, conservará alegria e jubilo espiritual; por humildade sentir-se-á indigna, mas com amor reconhecerá minha presença.
São esses os sinais que ocorre tomar em consideração para distinguir quem visita a alma, se sou eu ou se é o demônio. Na minha visita, o orante começa pelo temor, passando depois à alegria e ao desejo de operar o bem; sendo o demônio, o primeiro impulso será de alegria, mas virão depois perturbação interna e trevas. Quem desejar progredir no amor seja humilde, prudente, não se engane. Perde a rota quem prefere navegar seguindo o amor imperfeito das consolações, e não a minha caridade.
Julguei oportuno tratar de tais enganos, nos quais costumam cair os cristãos da "caridade comum" que vivem com pouco esforço em tempo de consolações, e falar do egoísmo espiritual dos meus servidores diante do prazer espiritual. Estes últimos, com muito amor-próprio, às vezes se detêm na procura do prazer e não reconhecem seja minha caridade, seja onde estão seus pecados. Por fim, achei bom falar da ilusão do diabo, à qual se pode cair sob a responsabilidade do homem se ele não tiver discernimento. Ocupei-me de tais assuntos unicamente para que tu e meus servidores sejais virtuosos por causa do amor por mim. Estes ditos enganos acontecem com aqueles que me amam imperfeitamente, com aqueles que procuram o dom, não o doador. Quem vive na cela do autoconhecimento e se aplica a ir além do amor imperfeito, acolhe-me com carinho e suga em meu coração o doce alimento da mensagem de Cristo crucificado.
A alma que chegou ao terceiro estado - de amor-amizade e de amor filial - já não me ama interessadamente. Comporta-se como amigo íntimo. O amigo verdadeiro, ao receber um presente, olha primeiro para o coração e o amor do doador; depois examinará o objeto e o conservará como recordação. Esta é a atitude de quem chegou ao terceiro estado, o do amor perfeito; quando lhe concedo favores, não fica a pensar primeiro neles; seu pensamento se fixa na bondade do doador. Querendo evitar que os homens agissem diversamente, providenciei a identificação entre o dom e o doador, unindo a natureza divina com a humana e dando-vos meu Filho, o qual é uma só coisa comigo. Graças a tal união, não podeis deter-vos no dom sem ao mesmo tempo olhar para o doador, que sou eu.
Considera, pois, com que amor deveis desejar o dom e o doador. Fazendo assim, estareis no amor puro, desinteressado, não mercenário; estareis continuamente na cela do autoconhecimento. 



  
  



























quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

CATECISMO SOBRE AS PRERROGATIVAS DA ALMA PURA

CATECISMO SOBRE AS PRERROGATIVAS DA ALMA PURA
SÃO JOÃO MARIA VIANNEY (CURA D'ARS).

Não há nada tão belo quanto uma alma pura! Se o compreendêssemos, não poderíamos perder a pureza. A alma pura é desprendida da matéria, das coisas, da terra, de si mesma... É por isto que os santos maltratavam o seu corpo; é por isto que não concediam o que lhe era necessário, nem sequer levantar-se cinco minutos mais tarde, aquecer-se, comer alguma coisa que lhe desse prazer... Aí está! O que o corpo perde, a alma ganha, o que o corpo ganha, a alma o perde.
A pureza vem do Céu; há que pedi-la a Deus. Se a pedimos, alcançá-la-emos. É preciso termos bem cuidado de não perdê-la. Devemos fechar o nosso coração ao orgulho, à sensualidade e a todas as demais paixões...como quando se fecham as portas e as janelas para que ninguém possa entrar.
Que alegria para o anjo da guarda encarregado de conduzir uma alma pura!...Meus filhos, quando uma alma é pura todo o Céu a olha com amor!...
As almas puras formarão círculo em torno de Nosso Senhor. Quanto mais puro tiver sido na terra, tanto mais perto de Deus se estará no Céu.
Quando o coração é puro, não se pode deixar de amar, porque se tornou a achar a fonte do amor, que é Deus. "Felizes, diz Nosso Senhor, os que têm coração puro, porque verão a Deus!".
Meus filhos, não se pode compreender o poder que uma alma pura tem sobre Deus. Não é ela que faz a vontade de Deus, é Deus que faz a vontade dela. Vedes Moisés, aquela alma tão pura! Quando Deus queria punir o povo judeu, dizia-lhe: "Não me rezes, porque a minha cólera explode contra esse povo". Não obstante, Moisés rezava, e Deus poupava o seu povo; deixava-se dobrar, não podia resistir à oração daquela alma tão pura. Ó meus filhos! Uma alma que nunca foi manchada por esse maldito pecado alcança do bom Deus tudo o que quer.
Para conservar a pureza, há três coisas: a presença de Deus, a oração e os sacramentos. Há ainda a leitura dos livros santos; esta nutre a alma.
Como é bela uma alma! Nosso Senhor fez ver uma a Santa Catarina; esta achou-a tão bela que disse: "Senhor, se eu não soubesse que há um só Deus, julgaria que fosse outro!" A imagem de Deus reflete-se em uma alma pura como o sol n'água.
Uma alma pura é a admiração das três pessoas da Santíssima Trindade. O Pai contempla a sua obra: "Eis aí a minha criatura!...O Filho, o preço do seu sangue.
Conhece-se a beleza de um objeto pelo preço que ele custou... O Espírito Santo habita nela como em seu templo.
Conhecemos ainda o preço de nossa dignidade, devemo-nos lembrar com frequência do Céu, do Calvário e do Inferno.
Se compreendêssemos o que é ser filho de Deus, não poderíamos fazer o mal, seríamos como anjos na terra. Sermos filhos de Deus! Ó bela dignidade!...
É alguma coisa de belo termos um coração e, por mais pequeno que ele seja, podermo-nos servir dele para amar a Deus! Como é vergonhoso para o homem descer tão baixo, ele que Deus colocou tão alto!
Quando os anjos se revoltavam contra Deus, esse Deus tão bom, vendo que eles não podiam mais fruir da felicidade para a qual os havia criado, fez o homem e este pequeno mundo que nós vemos, para alimentar-lhe o corpo. Havia, porém, que lhe alimentar a alma, e como nada de criado pode alimentar a alma, que é espírito, Deus quis dar-se ele próprio por alimento.
Mas a grande desgraça é que descuramos de recorrer a essa divina comida, para atravessarmos o deserto desta vida. Como uma pessoa que morre de fome ao lado de uma mesa bem servida, há pessoas que levam cinquenta, sessenta anos sem alimentar a própria alma!
Oh! Se os cristãos pudessem compreender esta linguagem de Nosso Senhor que lhes diz: "Apesar de tua miséria, eu quero ver de perto essa bela alma que criei para mim. A fiz tão pura, que só meu corpo pode alimentá-la".
Nosso Senhor sempre distinguiu as almas puras. Vede São João, os discípulo amado, que repousou sobre o seu peito!... Santa Catarina era pura; por isso passeava muitas vezes no Paraíso. Quando morreu, os anjos tiraram-lhe o corpo e levaram-no para o Monte Sinai, lá onde Moisés recebera os mandamentos da lei. Deus fez ver por esse prodígio que uma alma pura lhe agradável, merece que mesmo seu corpo, que lhe participou da pureza, seja sepultado pelos anjos.
Deus contempla com amor uma alma pura, concede-lhe tudo quanto ela pede. Como haveria Ele de resistir a uma alma que só vive para Ele e n'Ele? Ela procura-O, e Deus se lhe mostra; chama-O, e Deus vem; faz uma coisa só com Ele; acorrenta-Lhe a vontade. Uma alma pura é onipotente sobre o coração tão bom de Nosso Senhor.
Uma alma pura é ao pé de Deus como um filho ao pé da mãe: acaricia-a, beija-a, e a mãe lhe retribui suas carícias e seus beijos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 1)

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO (Cont. 1)

18.2 - A caminhada para o amor amizade.
Vês assim a que alturas chega o homem que atingiu o amor-amizade.Depois de ultrapassar o primeiro degrau, os pés de Cristo crucificado, atinge o segredo do coração, isto é, o segundo degrau, conforme representei o corpo de meu Filho.
Disse antes (16.1) que os degraus figuravam as três faculdades; agora mostro como significam (também)
as três fases pelas quais passa o homem. Mas antes de ocupar-me do terceiro degrau - que é o da boca de Cristo - quero explicar-te qual a caminhada para o amor-amizade (18.2), como é vivido tal amor (18.3) e quais são os sinais reveladores da sua presença (18.4).
Relativamente ao modo como se chega ao amor-amizade e filial, dá-se da seguinte maneira: inicialmente imperfeito, o homem vive no amor servil; com a perseverança e esforço, chega ao amor interesseiro das consolações (espirituais) no qual se compraz olhando-me como algo útil para si mesmo. Tal é o roteiro para quem quer chegar ao amor-amizade e filial. Este último é o amor perfeito; com ele alcança-se a herança do reino. O amor filial inclui o amor-amizade; nesse sentido se passa do amor-amizade ao amor filial. Mas qual é a estrada? Vou dizê-lo.
Toda perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se de humildade; a humildade nasce do autoconhecimento e da vitória sobre o egoísmo da sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário pois, perseverar na cela do autoconhecimento. Nesta cela o homem conhecerá o meu perdão através do sangue de Cristo e atrairá sobre si pelo amor a minha caridade, procurará destruir em si toda má vontade espiritual e temporal. Fará como os apóstolos e Pedro que, depois da negação, chorou. Era um pranto imperfeito, que imperfeito permaneceu durante os quarenta dias que precederam a Ascenção. Depois que Jesus subiu ao Céu em sua humanidade, Pedro e os demais (apóstolos) fecharam-se no Cenáculo, esperando a vinda do Espírito Santo segundo a promessa feita por meu Filho. Ali permaneceram com as portas fechadas, cheios de medo, como acontece a todo homem antes de chegar ao verdadeiro amor. Ficaram perseverantes na oração humilde e contínua, até receber a plenitude do Espírito Santo. Então, livres do temor, passaram a seguir e pregar Cristo crucificado.
Também o homem que deseja atingir tal perfeição, por medo do castigo começa a chorar depois de abandonar o pecado mortal pelo arrependimento; em seguida, eleva-se à consideração de minha misericórdia, e nisto encontra consolação e prazer. É algo ainda imperfeito. Para que se encaminhe à perfeição, após os "quarenta dias" - que são os dois primeiros estados - aos poucos vou me afastando da alma quanto às consolações, sem retirar-lhe a graça.
Foi quanto Jesus revelou aos discípulos, ao dizer: "Irei e voltarei a vós" (Jo 14,27). Tudo quanto ele dizia a eles em particular, afirmava-o igualmente para todos os seus contemporâneos e às gerações futuras. "Irei e voltarei a vós", disse ele; e o fez. Voltou, quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. De fato, já te disse (12.5) que o Espírito Santo não vem sozinho, mas com meu poder, com a sabedoria do Filho e com a própria clemência, pois ele procede do Pai e do Filho.
Pois bem, afirmo-te que, para libertar o homem da imperfeição (do amor servil e interesseiro), afasto-me da alma quanto às consolações. Quando se achava no pecado mortal, o pecador estava longe de mim; por sua culpa, eu me afastara dele quanto à graça. Havia-se fechado a porta do desejo por culpa sua, sem responsabilidade do sol divino. Ao tomar consciência das próprias trevas, ele abre as janelas, "vomita" a podridão do pecado na santa confissão, e então, pela graça, volto à sua alma. Se me afasto, é quanto às consolações, não quanto à graça, no modo explicado acima. Ajo assim para que a pessoa se humilhe, procure-me com empenho, seja provada quanto à fé e se torne prudente. A tais alturas, se o cristão me amar desinteressadamente, com fé viva e desapego de si, alegrar-se-á nas adversidades, achando-se indigno de viver no sossego e descanso da mente. Mas este já é o segundo assunto dos três que falei antes (18.2).
   
18.3 - Como se vive o amor-amizade

18.3.1 - A vigília de oração

Eis o que faz a pessoa que chegou (ao amor-amizade): Ao perceber que me ausentei quanto às consolações, não cai em desânimo. Persevera humildemente no esforço pelo autoconhecimento, certa de que o Espírito Santo virá. Como o espera? Sem ociosidade, em contínua vigília de oração. Será uma vigília exterior e interna, no sentido de que a inteligência não se feche, mas reflete sob a luz da fé. Assim a pessoa evita as distrações do coração, medita sobre a bondade do meu amor, compreende que nada mais desejo que sua santificação. Disso é garantia o sangue do meu Filho. Como o pensamento está vigilante no conhecimento de mim e de si, a alma ora continuamente. É a "oração contínua", a oração da vontade santa e boa. A pessoa permanece também na oração exterior, feita nos tempos determinados conforme as prescrições da santa Igreja. Tal é o comportamento do homem que da imperfeição chegou à perfeição!
Para que a alma atingisse esse grau, dela me afastara quanto às consolações. Outro motivo da ausência destas consolações é este: para que o homem, vendo-se na secura, sofra, perceba a própria debilidade, instabilidade e falta de perseverança; em outras palavras, veja e conheça o próprio defeito, descubra em si a raiz do egoísmo. É para que a pessoa se conheça e se supere, suba à cadeira da própria consciência, corrija todo sentimento falso, destrua as raízes do egoísmo com o desapego de si e o amor pelo bem.
É bom que compreendas o seguinte: qualquer imperfeição e perfeição são adquiridas e manifestadas, seja em mim como no próximo; compreendem-no os simples, que muito amam as pessoas no espírito. Se acolhem o amor por mim desinteressadamente,, desinteressadamente também amam o próximo. Pode-se comparar a uma vasilha: retirada cheia de uma fonte, se alguém dela beber, ficará vazia; mas se alguém enquanto bebe a conserva na fonte, jamais se esvaziará, estará sempre cheia. Assim, o amor humano e espiritual pelo próximo, deve realizar-se em mim, sem outros interesses.
Eu vos peço que me ameis com a mesma caridade com que vos amo. Tal coisa não podeis realizar diretamente a meu respeito, pois eu vos amei antes de ser amado. Qualquer ato de amor vosso de amor por mim é devido, não gratuito; sois obrigados a me querer bem. Eu amo-vos espontaneamente, sem qualquer obrigação. Não, relativamente a mim não tendes a possibilidade de cumprir o amor que peço! Por isso, dei-vos um meio: o próximo. Com referência a ele podeis fazer o que é impossível para comigo, podeis amá-lo gratuitamente, sem interesses pessoais. Ora, considero feito a mim o que fazeis para os homens. Foi isso que meu Filho deu a entender a Paulo que perseguia os cristãos, dizendo-lhe: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9,4); meu Filho considerava realizada contra mim a perseguição feita contra os cristãos.
Há de ser desinteressado o amor pelo próximo; deveis amá-lo com a mesma caridade que me amais. Sabeis como uma pessoa percebe que seu amor espiritual pelos outros é imperfeito? Se fica triste ao notar que aquele que é amado não corresponde com a mesma intensidade de amor, evita sua companhia, não procura agradar, demonstra maior atenção para com outros. Semelhante tristeza evidencia que a caridade por mim ainda é fraca; mostra que o cristão ainda está "bebendo" fora de mim, mesmo que seu amor provenha da minha caridade. Quando o amor para comigo é imperfeito, imperfeita se mostra a caridade para com o próximo espiritualmente amado. A razão de tudo é o egoísmo, cuja raiz ainda não foi arrancada. E eu permito essas coisas, para que o cristão reconheça sua imperfeição.
A ausência de consolações acontece para que o homem se feche na cela do autoconhecimento, lugar onde se adquire a perfeição. quando retorno com as consolações, darei maior luz e conhecimento da verdade, de modo que considerará como uma graça poder destruir o egoísmo; já não cessa de podar a vinha da própria alma, de arrancar os maus espinhos que são os maus pensamentos, de assentar as virtudes no sangue de Cristo, conforme as encontrou ao seguir as pegadas de sua ponte. Acima já ensinei (12.3), se bem recordas, que as pedras da ponte-mensagem de Cristo eram as suas virtudes, cimentadas com sangue, pois é do sangue que elas retiram a vida. Quando o homem penetra e caminha na mensagem de Cristo, passa a amar a virtude e a odiar o pecado com grande perseverança, separa-se inteiramente da mundanidade e fecha-se na cela do autoconhecimento.
 Por que se fecha? Porque conhece a própria imperfeição; também pelo desejo de atingir o amor desinteressado e livre, pois sabe perfeitamente que não existe outro modo de consegui-lo; desse modo espera com fé viva meu retorno com maior infusão de graça.
Em que consiste a fé viva? Consiste na prática perseverante das virtudes, em não voltar atrás por motivo algum, em não deixar a oração jamais - exceto por obediência ou caridade -, pois nenhuma outra razão existe. Digo isto porque muitas vezes, durante o tempo reservado à oração, o demônio se apresenta através de muitas tentações e dificuldades, mais do que acontece em outras ocasiões. Para que o orante sinta tédio na oração, sugere-lhe: "Tua súplica para nada serve, pois quando oras não deverias preocupar-te senão com aquilo que dizes". Sua intenção é cansar a pessoa, confundi-la e fazer com que abandone o exercício da oração. No entanto, a prece é a arma com que o homem se defende de todos os inimigos, se realizada com amor, espontaneidade e fé.
Filha querida, convence-te de que é na oração contínua, fiel e perseverante que todas as virtudes são adquiridas. Mas é preciso perseverar, nunca a deixar: nem por ilusão do diabo, nem por fraqueza pessoal, quais sejam os pensamentos e impulsos íntimos; nem por "conselhos" alheios. O demônio frequentemente se põe nos lábios das pessoas, levando-as a afirmativas que destroem a oração. Tudo isso há de ser vencido perseverantemente. Como é agradável ao orante e a mim a prece feita na cela do autoconhecimento. Ali o homem crê e ama na abundância do meu amor, que em meu Filho tornou-se visível e provada no sangue. Sangue que inebria a alma, reveste-a com chamas do amor divino, eucaristicamente a alimenta. Foi na despensa da hierarquia eclesiástica que eu guardei o corpo e sangue do meu Filho, perfeito homem e perfeito Deus, pois entreguei aos sacerdotes a chave do sangue a fim de que o distribuíssem. Já te falei sobre esta despensa (12.3), construída sobre a ponte-Cristo para alimentar e fortificar os viandantes e peregrinos que caminham segundo a mensagem de meu Filho, impedindo que morram de fome. Tal alimento fortifica de acordo com o amor de quem o recebe, seja sacramentalmente, seja espiritualmente.
Sacramentalmente, na comunhão eucarística; espiritualmente, ao se comungar pelo desejo da eucaristia ou meditando-se a paixão de Cristo crucificado. Esta última é uma comunhão de amor no sangue, que por amor foi derramado; nela a pessoa inebria-se, inflama-se, fica saciada no desejo santo, cheia de amor por mim e pelos homens. Mas, onde se alcança tudo isso? Na cela do autoconhecimento e na oração, quando o homem deixa de ser imperfeito, como aconteceu com os discípulos e Pedro ao atingirem a perfeição. Quais são os meios necessários? A perseverança e a fé.
Não creias que para alcançar tamanho fervor e tal alimento espiritual, baste a oração vocal. Muitos pensam que seja assim. Sua oração é constituída mais de palavras que de amor. Parece que a nada mais aspiram que recitar muitos salmos e pai-nossos! Quando atingem um determinado número, dão-se por satisfeitos. Para eles, a finalidade da oração está na recitação verbal. Não haveria de ser assim. Nada praticando além disso, tais pessoas pouco aproveitam e pouco me agradam.
Dirás: "É preciso então abandonar tal oração, mesmo que nem todos pareçam atraídos pela oração mental?" Não, mas é preciso progredir. Sei que o homem, antes de chegar à perfeição é imperfeito. É normal que sua oração comece deficiente. Durante tal fase imperfeita, o orante deverá ocupar-se na prece vocal para não cair na inatividade. Mas, mesmo então, sua oração de palavras não deve ser feita sem a oração do espírito. Enquanto pronuncia as palavras, eleve seu pensamento até mim, considere seus defeitos em geral, medite sobre a paixão de meu Filho. No sangue de Cristo encontrará a plenitude do amor e a remissão dos pecados. Ao tomar consciência dos próprios defeitos, reconhecerá minha caridade e será ajudado a perseverar na oração.
Não desaconselho pensar nos pecados um por um, para que tal consideração não contamine a mente com lembranças impuras. O que não quero é que se faça unicamente a recordação dos pecados, em particular ou em geral, sem a lembrança da paixão de Cristo e da imensidade do meu perdão, para evitar a perplexidade interior. Se não forem acompanhados pelo pensamento da paixão, o autoconhecimento e a reflexão sobre os próprios pecados, confundem a alma. Neste caso o demônio estaria presente e, sob pretexto de falso arrependimento e desprezo das culpas, levaria a pessoa à condenação. Além disso, por falta de confiança na minha misericórdia, corre-se o risco de cair no desespero, um dos enganos a que o demônio pode conduzir meus servidores. Para vossa utilidade, portanto, se quiserdes fugir das maquinações do diabo e agradar-me, conservai o coração aberto ao meu incomensurável perdão. O diabo orgulhoso não tolera um espírito humilde; não suporta a imensidade do meu amor, no qual a pessoa humilde se apóia. Se bem te lembras, certa vez o demônio quis aterrorizar-te com semelhante confusão interior. Afirmava ele que tua vida era uma falsidade, que não havias cumprido a minha vontade. Auxiliada por mim, agiste como realmente deverias agir, pois nada recuso a quem me implora. Com humildade, tu te apoiaste na minha misericórdia e disseste: "Confesso ao criador que transcorri a vida em trevas! Refugio-me, porém, nas chagas de Cristo crucificado e lavo-me no seu sangue. Destruirei desse modo minhas iniquidades e com amor hei de alegrar-me em meu criador". Então o demônio retirou-se. Em outra batalha ele quis levar-te ao orgulho e dizia: "És perfeita, agradável a Deus. Não é necessário que te mortifiques mais, nem que chores ainda os teus pecados". Naquela ocasião eu te iluminei e entendeste o caminho a seguir, o da humildade, respondendo: "Pobre de mim! João Batista jamais pecou, foi santificado no seio materno, e no entanto penitenciou-se muito. Eu, ao invés, cometi tantas faltas e ainda não comecei a reconhecê-las com lágrimas e verdadeira contrição; ainda não tomei consciência de quem é Deus, o ofendido, nem de quem sou eu, a pecadora". Não tolerando esse ato de humildade e de confiança na minha misericórdia, o demônio disse: "Maldita sejas tu, pois de nenhum modo consigo vencer-te! Se te rebaixo ao desespero, tu te elevas à misericórdia; se te engrandeço pela vaidade, tu te rebaixas até o inferno pela humildade e aí me persegues. Não voltarei mais; tu combates com a lança da caridade".
Por conseguinte, o orante deve controlar o autoconhecimento mediante a consciência da minha misericórdia, e vice versa. Agindo assim sua oração vocal será útil a ele e agradável a mim. Se perseverar em tal exercício, passará da oração vocal imperfeita à oração do espírito, a perfeita. Ao contrário, se sua preocupação continuar apenas na quantidade de preces, jamais o conseguirá. O mesmo aconteceria se abandonasse a oração mental pela vocal. Pois existem pessoas tão ignorantes que, indo orar, fazem a intenção de recitar determinadas orações vocais; nessa ocasião eu as visito de uma forma ou de outra, conforme o meu agrado ou seus desejos anteriores. Dou-lhes, por exemplo, arrependimento dos pecados; recordo-lhes meu amor; torno presente em suas mentes a pessoa do meu Filho sob variadas maneiras. Mas tais pessoas, para completar aquele número de orações, desprezam minha visita, com remorso de abandonar quanto começaram... Não deveriam tomar essa atitude! Logo que a pessoa percebe minha visita, nas modalidades de que falei, deve deixar a oração vocal. Mais tarde, uma vez cessada a oração do espírito, e, se dispuser de tempo, poderá retomar aquilo a que se propusera fazer. Na falta de tempo, despreocupe-se, não fique triste, não se perturbe. A única exceção se dá para o Ofício Divino (Liturgia das Horas) que os clérigos têm obrigação de recitar sob pena de pecado. É obrigação dos clérigos dizê-lo até a morte. Quando os clérigos sentirem tais visitas na hora do Ofício, conservem o espírito elevado no amor e tomem a decisão de recitar o ofício no momento ou depois, mas não devem faltar à própria obrigação.
Em qualquer outra oração, a pessoa deve começar pela vocal, passando depois à mental. Faça-o logo que sentir o espírito bem disposto. Tal maneira de agir conduzirá o orante à perfeição do amor. Não se despreze, pois, a oração vocal, qualquer que seja ela. Siga-se a orientação dada. Quem assim fizer, com esforço e perseverança, chegará à oração verdadeira e à comunhão espiritual na paixão de Cristo. Neste sentido eu disse antes (18.3.1) que alguém comunga espiritualmente no corpo e sangue de Cristo sem receber o sacramento da eucaristia. Tal pessoa comunga no amor, fato que acontece na oração em maior ou menor intensidade, de acordo com o amor do orante. Quem age com pouca prudência cristã, pouco achará; quem age sabiamente, muito encontrará.Quanto mais o homem desvencilhar sua afeição e prendê-la a mim, mais me conhecerá, mais me amará, mais me experimentará. Como vês, não é pela quantidade de palavras que se chega à oração perfeita, mas pelo amor e conhecimento de mim e de si mesmo, cada um desses conhecimentos completando o outro. 
A oração vocal e mental hão de ser praticadas contemporaneamente, pois andam juntas como a vida ativa e a contemplativa. A oração vocal e mental podem ser entendidas de diversas maneiras. Já falei do desejo santo; ele constitui a oração contínua e consiste na posse de um amor reto e santo. Quando esse desejo santo aparece no ambiente e horário da prece, temos a oração vocal (com desejo santo) obrigatória; outras vezes, será a oração vocal (com desejo santo) espontânea. Será uma oração contínua, adaptada às necessidades da salvação do próximo e ao estado de vida do orante. Todos os homens devem trabalhar em prol da salvação dos outros no próprio estado de vida, por obediência ao princípio do amor santo. Os ensinamentos e as atividades que alguém realize constituirão uma oração em atos, supondo-se que tal pessoa cumpra suas orações obrigatórias. Tudo o que fizer além desta oração obrigatória, seja em favor do próximo como de si mesma, será oração. Como dizia o glorioso apóstolo Paulo, não pára de orar quem não cessa de praticar o bem. Por isso te disse que a oração se realiza de diversas maneiras, seja a vocal como a mental; quando realizada no amor, constitui a oração contínua, pois a caridade é oração.
Desse modo acabei de explicar-te como se chega à oração mental. É preciso exercitar-se com perseverança na oração, passando da vocal para a mental quando "visito" a alma. Disse como é a oração comum e a espontânea,bem como a oração da vontade santa e da atividade em favor de si mesmo ou dos outros, realizada por amor fora dos momentos reservados para a prece.



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO

18 . DEUS PAI EXPLICA COMO ATINGIR A PERFEIÇÃO

18.1 - Os degraus do amor

18.1.1 - O amor servil (1º estado)

   Então o bondoso Deus, para satisfazer o desejo daquela serva, dizia:
   - Considera estas pessoas, que abandonaram o pecado mortal por causa do temor servil; é necessário que passem ao amor virtuoso. O temor servil, sozinho, não basta para lhes dar a vida eterna.
   O medo constituía a lei antiga, que eu dei através de Moisés. Ela se baseava no temor, pois o castigo seguia imediatamente à culpa. A lei nova é a do amor e veio com meu Filho; fundamenta-se na caridade. A nova lei não cancelou a antiga, mas a aperfeiçoou; meu Filho o disse: "Não vim abolir a lei, mas cumpri-la" (Mt 5,17). Jesus fundiu a lei do temor com a lei do amor; eliminou o imperfeito medo de castigos e deu-lhe o temor santo, isto é, o medo de ofender-me. Assim, a lei imperfeita tornou-se perfeita lei do amor. Por sua vinda, meu Filho - qual carro de fogo - trouxe o fogo da caridade através da natureza humana e a misericórdia em abundância. Ele aboliu o castigo pelas faltas. Na lei mosaica, antigamente, havia a ordem de se punir imediatamente a culpa; hoje não é mais assim. A culpa não é mais castigada nesta vida. Agora ninguém mais deve ter temor servil, pois a culpa não é punida, mas deixa-se para depois, na vida futura, quando a alma estiver separada do corpo. Assim mesmo, só no caso de que o homem não se emende pela contrição perfeita. Enquanto viver (aqui), o homem estará no tempo do perdão; só depois de morto terá o tempo da justiça. É necessário, portanto, abandonar o temor servil e praticar o temor santo, o amor por mim. Em caso contrário, recai-se no rio do pecado por ocasião das adversidades ou das consolações. Estas últimas, se a pessoa a elas se apegar desordenadamente, tornam-se espinhos que ferem a alma.
   Afirmei antes (16.13) que é impossível sair do rio do pecado e subir à ponte, sem escalar os três degraus (comuns); de fato, uns o fazem imperfeitamente; outros, perfeitamente; outros, ainda, perfeitissimamente. As pessoas que agem por temor servil sobem os três degraus unificando imperfeitamente suas faculdades. Conscientizando-se do castigo que segue à culpa, (o pecador) com a memória lembra-se do pecado; pela inteligência considera as penas merecidas; e, na vontade, recusa o castigo. Supondo que ajam assim pela primeira vez, seria preciso que o fizessem debaixo da iluminação da fé, isto é, que não se limitassem apenas a pensar nos castigos, mas que considerassem também as virtudes e o amor que lhes dou. Agindo por esta última forma, escalarão (os degraus comuns) com amor, livres do temor servil.
   Necessita-se destruir o egoísmo, ser prudente, constante, perseverante. Infelizmente muitos iniciam a escalada com tamanha vagarosidade, amam-me com tal insegurança e negligência, que logo desanimam. Qualquer sopro de vento os faz parar ou retroceder. Tendo atingido o primeiro degrau do Crucificado imperfeitamente, não passam ao segundo, o do Coração.

18.1.2 - O amor interesseiro (2º estado)

   Alguns se tornam servidores fiéis, dedicando-se a mim, não por medo de castigo, mas por amor. Mas seu amor ainda é interesseiro: gostam de mim por vantagens pessoais, à procura das consolações que acham em mim. Trata-se de um amor imperfeito. Sabes quando se manifesta essa imperfeição? No momento em que tais pessoas se vêem privadas da consolação experimentada em mim. Do mesmo tipo é o amor que têm pelo próximo: um amor imperfeito, que não basta, que é passageiro, vai diminuindo e muitas vezes se extingue. Chega a desaparecer, quando retiro destas pessoas as satisfações espirituais e permito dificuldades e oposições, no intuito de provar-lhes a virtude. Minha intenção seria leva-las a um perfeito autoconhecimento, à consciência do próprio nada, a perceber a própria incapacidade frente à graça. Na realidade, no momento da provação, não me procuram, recusam-se a reconhecer-me como benfeitor, não procuram somente a mim com verdadeira humildade. Eis a razão por que concedo e depois retiro as consolações, deixando intacto o estado de graça.
   Mas diante disso, estas pessoas desanimam, impacientam-se. Algumas vezes abandonam seus exercícios espirituais; muitas outras, fingindo virtude, dizem a si mesmas: "Esta prática para nada serve" - só porque se vêm carentes de fervor espiritual. Agem imperfeitamente, como pessoa que ainda não se desprendeu totalmente do egoísmo que lhe venda os olhos da fé. Quem se livra do egoísmo entende que tudo procede de mim, que nenhuma folha da árvore cai sem a minha permissão (Mt 6,28) que tudo concedo ou permito a fim de santificar os homens, isto é, para que atinjam a finalidade para a qual os criei. Seria preciso que vissem e compreendessem o seguinte: nada mais desejo que o seu bem no sangue do meu Filho unigênito, com o qual foram purificados. Em tal sangue podem reconhecer meu plano, ou seja, que para dar-lhes a vida eterna eu os criei à minha imagem e semelhança e, depois, no sangue de Jesus, os recriei como filhos adotivos através da graça. Infelizmente, são imperfeitos e somente procuram seus interesses e deixam de amar os outros.
   Os primeiros (18.1.1) arrefecem por medo de sofrimentos; estes, os segundos, deixam de fazer bem aos outros e decaem no seu amor por ausência de interesses pessoais e consolação interior. O motivo é porque o homem, sem amor altruísta, ama a si mesmo segundo a imperfeição com que me ama, isto é, à procura de interesse próprio.
   Se tais pessoas não se derem conta de tal imperfeição, se não aspirarem ao amor perfeito, impossível será que não voltem atrás. Para quem deseja chegar à vida eterna, o altruísmo no amor é indispensável. Para se adquirir a vida interminável, não basta evitar o pecado por medo de castigos ou ser virtuoso por interesses; é mister evitar o pecado porque ele me ofende, e praticar a virtude porque ela é amor por mim.
   Quanto afirmado constitui a maneira geral da vocação ao amor. Começa-se pela imperfeição. Mas ocorre que haja passagem da imperfeição à perfeição (no amor): seja nesta vida, praticando a virtude com um coração desinteressado e liberal a meu respeito, seja mediante o reconhecimento da própria imperfeição na hora da morte, com o propósito - no caso de que continuasse a viver - de servir-me altruisticamente.
   Foi com semelhante amor, imperfeito, que (São) Pedro amou o doce e bondoso Jesus, gozando de sua afável companhia (durante a vida pública); mas quando chegou o tempo da dificuldade, ele esmoreceu, fugiu, renegou, por medo de sofrer. Os que vão por este caminho, do amor servil e interesseiro, caem em muitos inconvenientes. Seria preciso que se elevassem e se comportassem como filhos, servindo-me desinteressadamente. Todavia, eu remunero os homens por todo esforço e dou a cada um de acordo com seu estado (espiritual) e boa vontade.

18.1.3 - O amor amizade (3º estado)

   Os que perseveram na oração e nas boas obras, os que na constância progridem na virtude, estes atingirão o amor-amizade. A estes, eu amarei como amigos, pois correspondo com igual afeição. Quem me quer bem como faz um servo com seu patrão, será amado por mim, o Senhor, na mesma medida; mas não me manifestarei a ele. Os segredos são revelados aos amigos íntimos somente! Sem dúvida alguma, um servo - graças às suas capacidades e afeição - pode progredir e tornar-se amigo caríssimo. E é justamente o que ocorre com estas pessoas. Enquanto permanecem no amor interesseiro, não me manifesto a eles; mas se reconhecem sua imperfeição, procuram as virtudes, destroem a raiz do egoísmo espiritual, renunciam aos sentimentos internos do temor servil e do amor interesseiro através da fé, então sim, serão do meu agrado e chegarão ao amor de amizade. Manifestar-me-ei a eles. Dizia Jesus: "Quem me amar, será um comigo; revelar-me-ei a ele e moraremos juntos" (Jo 14,21.23). A amizade íntima consiste nisto: que são dois corpos, mas uma só alma no amor, pois o amor transforma (o amante) na coisa amada. E quando (os amigos) se tornam uma só alma, entre eles já não haverá segredos. Por isso dizia meu Filho: "Virei e moraremos juntos".
   Sabes como é que me manifesto à pessoa que realmente me ama conforme o ensinamento de Cristo? Nela eu revelo meu poder de muitos modos, de acordo com seus desejos. São três as modalidades principais: 1) manifesto minha afeição e caridade por meio do Verbo encarnado, cuja caridade se revelou através do sangue derramado num incêndio de amor. Esta minha manifestação é dupla: de modo geral, naqueles que se encontram na "caridade comum", levando-os a reconhecer meu amor em numerosos favores; e de modo especial, naqueles que se tornaram meus amigos; estes últimos, com acréscimo aos sentimentos íntimos com que saboreiam, conhecem, experimentam e sentem na caridade comum. 2) manifesto minha caridade através das próprias pessoas. Não faço acepção de pessoas, mas olho o desejo santo de cada uma e manifesto-me em conformidade com a perfeição com que a pessoa me procura. Às vezes - e trata-se ainda desta segunda modalidade - concedo o espírito de profecia, com a revelação de acontecimentos futuros. Isso acontece de muitas maneiras, segundo as necessidades que vejo na própria pessoa ou na sociedade. 3) de muitos modos, segundo as aspirações e desejos da pessoa, faço estar presente no seu espírito o meu Filho unigênito: às vezes, quando procura conhecer meu poder durante a oração e eu atendo, revelando minha força; outras vezes, ao querer a sabedoria do Filho, e eu o ponho como objeto de seus conhecimentos; por fim, ao desejar-me na clemência do Espírito Santo, e isto me possibilita revelar meu amor levando a alma à prática do bem, com grande caridade pelo próximo.
   Como vês, meu Filho dizia uma verdade, quando afirmava: "Quem me ama será um comigo". Ao viver sua mensagem, estais unidos a ele e a mim, pois eu e ele somos um. Nele, manifesto-me. Se ele dizia: "Eu manifestar-me-ei a vós", falava com exatidão. Ao se revelar, revela-me.
   Qual seria o motivo por que não disse: "Eu revelar-vos-ei meu Pai? A razão principal é tríplice: Em primeiro lugar quis dizer que eu e ele não somos separados um do outro. Quando o apóstolo Filipe lhe pediu: "Mostra-nos o Pai e isto nos basta" (Jo 14,8), respondeu: "Quem me vê, vê o Pai" (Jo 14,9). Disse assim porque é um comigo. O que ele é, recebeu de mim. Em tal sentido, ensinava aos judeus: "Minha doutrina não é minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 7,17). É que o Filho procede de mim; não o contrário! Sou um com ele e ele comigo. Por isso não falou: "Manifestarei o Pai", mas "eu manifestar-me-ei". Em segundo lugar, porque ao manifestar-se a vós nada mais fazia do que mostrar quanto recebera de mim, como que dizendo: "O Pai se manifestou em mim porque sou um com ele; por meio de mim, nós dois nos revelamos". Em terceiro lugar porque, sendo eu invisível, não posso ser visto por vós neste mundo. Quando vossa alma se separar do corpo, espiritualmente vereis a mim e ao Verbo até a ressurreição final. Já o disse ao tratar da ressurreição (14.7). Tal qual sou, nãopodeis ver-me. Para vos ajudar, escondi a divindade sob o véu na natureza humana em Cristo. Invisível, tornei-me como que acessível aos vossos olhos. Cristo me manifesta. Por isto não dizia: "Eu manifestarei o Pai", mas: "Eu manifestar-me-ei a vós", como que para significar: "Eu manifesto-me a vós de acordo com quanto o Pai me deu". Como percebes, meu Filho se manifesta ao me revelar. Não dizia: "Eu vos manifestarei o Pai", porque vós, no corpo mortal, não sois capazes de ver-me; além disso, porque ele e eu somos uma só coisa.

VISÃO DE CATARINA SOBRE A HUMANIDADE PEREGRINA

17 . VISÃO DE CATARINA SOBRE A HUMANIDADE PERREGRINA

   Então aquela serva, inflamada de desejo santo, contemplou a si mesma no espelho da divindade e viu a humanidade que caminhava de vários modos e com diversificados interesses na procura do próprio fim. Uns homens, estimulados pelo medo dos castigos (eternos) começavam a subir (do rio para a ponte-Cristo); numerosos atingiam o segundo degrau, após terem atendido ao primeiro apelo de Deus; pouquíssimos iam com grandíssima perfeição.

sábado, 16 de novembro de 2013

DEUS PAI FALA SOBRE A FUNÇÃO DAS FACULDADES NA VIDA ESPIRITUAL

16 . DEUS PAI FALA SOBRE A FUNÇÃO DAS FACULDADES NA VIDA ESPIRITUAL

16.1 - As faculdades como degraus comuns

   Então Deus Pai, cheio de bondade, olhou para o desejo santo e a fome daquela serva e lhe disse:
   - Filha querida, não desprezo os santos desejos dos homens; gosto até de realiza-los. Vou mostrar e explicar quanto pedes. Queres que eu te fale detalhadamente sobre os três degraus e diga-te como hão de agir os pecadores para abandonar o rio do pecado e atingir a ponte. Já me ocupei deste assunto antes quando falei da ilusão e cegueira dos maus, esses "mártires" do demônio que vivem na certeza do inferno. Mostrei que recompensa recebem por suas más ações (14.5) e fiz ver como deveriam comportar-se (14.14). Todavia, para atender ao teu pedido, vou dar maiores explicações.
   Já sabes que todos os males procedem do egoísmo (2.7); é ele que obscurece a razão, na qual se encontra a iluminação da fé. Quem perde uma dessas duas luzes, perde ambas. Ao criar o homem à minha imagem e semelhança, dei-lhe a memória, a inteligência e a vontade. Entre elas, a mais nobre é a inteligência. Embora seja movida pela vontade, é a inteligência que alimenta a vontade. Por sua vez, a vontade fornece à memória a recordação de mim e de meus favores. Essa recordação dará à pessoa solicitude e gratidão. Como vês, uma faculdade reabastece a outra, nutrindo o homem na vida da graça.
   Não vive o homem sem amor; ele sempre procura algo para amar. Criei por amor, criei-o no amor. Assim, a vontade move a inteligência, quase dizendo-lhe: "Quero amar; o amor é meu sustento". Desperta-se então a inteligência e responde: " Se queres amar, vou dar-te o bem para que o ames"! Reflete ela sobre a dignidade humana e sobre a indignidade proveniente do pecado. Na dignidade enxerga a bondade e o amor com que criei o homem; na indignidade percebe a misericórdia, graças à qual dou-lhe o tempo (de arrepender-se) e o liberto do mal. Diante dessas realidades, a vontade se alimenta de amor: sente o desejo santo, despreza a sensualidade, torna-se humilde e paciente, concebe interiormente as virtudes, pratica-as mais ou menos perfeitamente no próximo, de acordo com a perfeição atingida. Mas disso falarei depois (18).
      Em sentido inverso, se o apetite sensível procura os bens materiais, a eles orienta-se a inteligência; e quando a mesma toma como objeto os bens passageiros, surgem o egoísmo, o desprezo pelas virtudes, o apego ao vício e, como consequência, o orgulho e a impaciência. Por sua vez, a memória encher-se-á com tais elementos, fornecidos pelo afeto sensual, obscurecendo-se a inteligência, que não mais vê senão aparências de bem. Tais aparências ficam sendo, então, a única claridade mediante a qual a inteligência olha e a vontade ama todo objeto de prazer. Sem estas aparências, o homem não pecaria, pois, como tendência inata, ele só pode desejar o bem. Peca, porque o mal toma colorações de bem. A inteligência não mais discerne ou reconhece a Verdade; por cegueira, engana-se e procura o bem e a satisfação onde eles não estão. Já afirmei antes (14.11) que os prazeres mundanos são espinhos venenosos; engana-se a inteligência ao considerá-los, a vontade ao amá-los, a memória ao retê-los. Comporta-se a inteligência como uma ladra, apoderando-se do alheio; igualmente a memória, conservando a contínua lembrança de realidades distantes de mim. Com tudo isso, a alma se priva da minha graça.
   É muito estreita a união destas três faculdades. Quando uma delas me ofende, as outras também o fazem. Como disse (16.1), uma apresenta à outra o bem ou o mal, conforme agrada ao livre arbítrio. Este se acha na vontade e a move como quer, em conformidade ou não com a razão. Possuís a razão - sempre unida a mim, a menos que o livre arbítrio a afaste mediante um amor desordenado - e tendes em vós uma lei perversa, que luta contra o espírito. Tendes, então, duas partes em vós mesmos: A sensualidade 62 e a razão. A sensualidade foi dada ao homem como servidora, a fim de que as virtudes sejam exercidas e provadas através do corpo. O homem é livre, já que meu Filho o libertou com seu sangue. Ninguém pode dominar a pessoa humana quanto à vontade, pois ela possui o livre arbítrio. Este se identifica com a vontade, concorda com ela. Fica, pois, o livre arbítrio entre a sensualidade e a razão, e inclina-se ora de um lado, ora de outro, conforme preferir.
   Quando a pessoa tenta livremente "congregar" as três faculdades em mim, na maneira explicada, todas as atividades espirituais e corporais humanas ficam unificadas. O livre arbítrio se afasta da sensualidade, tende para o lado da razão e eu me coloco no centro das faculdades, realizando a palavra do meu Filho: "Quando dois ou três se reunirem em meu nome, estarei no meio deles"(Mt 18,20). Realmente, como te disse (10.1) ninguém pode vir a mim senão por meio de Cristo. Esta a razão pela qual fiz dele uma ponte com três degraus. Esses degraus, como declarei (18.), representam três estados (espirituais) do homem.
  
   16.2 - A sede da Água viva.

   Acabei de explicar-te a figura dos três degrau comuns, que são as três faculdades da alma. São etapas sucessivas para se chegar à ponte-mensagem do meu Filho. Sem a unificação dessas três faculdades, ninguém conseguirá perseverar. Sobre a perseverança já falei antes (14.14), quando me imploraste sobre como devem agir os pecadores para saírem do rio do pecado e querias mais detalhes. Então eu disse que, sem perseverança, ninguém chega à meta final. Dupla é a meta: o vício e a virtude. Todas as duas pedem perseverança. Se queres chegar à Vida, hás de perseverar na prática das virtudes; quem preferir a morte eterna, que persevere no pecado. Pela perseverança chega-se até a mim, que sou a vida, ou ao demônio para beber as águas mortas.
   Todos vós, na "caridade comum" ou na "via perfeita", fostes convidados por meu Filho, que inflamado de desejo santo gritava no templo: "Quem tem sede venha a mim e beba, pois eu sou a fonte da água viva (Jo 7,37; 4,10). Ele não disse: "Vá ao Pai e beba", mas "venha a mim". Por que? Porque eu, Pai, não posso sofrer; ele, sim. Também vós, enquanto sois caminhantes e peregrinos nesta vida mortal, sempre tendes dificuldades. Como ficou dito (10.2), depois do pecado original, a terra produziu espinhos. E por que razão afirmou: "Venha a mim e beba"? Porque ao viver na "caridade perfeita", seguindo os mandamentos e conselhos, ou na "caridade comum", seguindo de fato só os mandamentos, conforme sua mensagem, vós bebeis e saboreais o sangue do Verbo encarnado. Quando vos unis a ele, imergis também em mim, oceano de paz. Eu e o Filho somos uma só coisa.
   Estais convidados, então, à fonte da água viva! É de vosso interesse que passeis pela ponte com perseverança. Nenhum obstáculo ou vento - próspero ou adverso - vos faça retroceder. Perseverai até me encontrar. Dar-vos-ei água viva em meu doce e amoroso Verbo encarnado, o Filho unigênito. Ele afirmou: "Eu sou a fonte da água viva" porque pela união da natureza divina com a humana ele me continha, como doador da água viva.
   Por que razão disse: "Venha a mim e beba?" Porque vós não viveis sem padecimentos. Ele pode sofrer, eu não! Fiz dele uma ponte; sem passar por ele ninguém consegue chegar até mim. Quando disse: "Ninguém chega ao Pai senão por mim" (Jo 14,6), falava uma verdade.
   Conheces agora qual o caminho a ser seguido, sabes como andar, isto é, com perseverança. Por outro modo não se bebe, pois essa é a virtude que alcança a glória e a coroa do triunfo em mim, vida duradoura.

16.3 - Que significa reunir "dois ou três"

   Volto a falar dos degraus gerai que deveis percorrer a fim de sair do rio do pecado, atingir a água viva e inserir-me na vossa caminhada.
   Pela graça eu repouso em vossas almas. Querendo progredir, é necessário que tenhais sede. Somente os sedentos acolhem aquele convite: "Quem tem sede, venha a mim e beba" (Jo 7,37). Quem não está com sede desanima de caminhar, para por cansaço ou em prazeres, vai de mãos vazias, sem se preocupar em levar consigo um balde para atingir a água. Mas sozinho ninguém progride. Ao apresentar-se o ferrão das contradições, olha-o como a um inimigo e retrocede. O homem solitário teme o encontro do inimigo; quem vai acompanhado, não sente medo. Pois bem, o cristão que ainda não percorreu os três degraus gerais, caminha solitário.
   Ocorre, pois, ter sede e reunir dois, três ou mais, na maneira explicada (16.1). Por que eu disse "dois e três"? Porque não existe dois sem três e três sem dois 65. O homem que está só não possibilita minha presença "no meio", por falta de companheiro que me permita estar "entre" eles. O solitário é um vazio, bem como aquele que só possui o egoísmo e vive sem amor pela minha graça e pelo próximo. Um nada, eis o que é a pessoa em quem estou ausente, por causa do pecado. Somente eu "sou aquele que sou" (Ex 3,14). O egoísta, solitário, não conta diante de mim, não me agrada. Eis por que meu Filho diz: Se dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" (Mt 18,20). Afirmei antes que não existe dois sem três ou três sem dois. Explico-me.
   Sabes que os mandamentos da lei se reduzem a dois; sem eles, nenhum outro é observado. São: amar-me sobre todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesma. Eis o começo, o meio e o fim dos mandamentos da lei. Todavia esses "dois" não se "reúnem" em mim sem os "três", isto é, sem a unificação das três faculdades da alma: a memória, a inteligência e a vontade. A memória há de recordar-se dos meus benefícios e da minha bondade; a inteligência pensará no amor inefável revelado em Cristo, pois ele se oferece como objeto de reflexão para manifestar a chama do meu amor; a vontade, unindo-se às duas faculdades anteriores, me amará e desejará como seu fim. Quando essas três faculdades estão assim reunidas, acho-me presente estre elas pela graça. E, como consequência, a pessoa vê-se repleta de amor por mim e pelo próximo, na "companhia" de verdadeiras e múltiplas virtudes.
   Em primeiro lugar, a vontade se dispõe a ter sede. Sede das virtudes, sede da minha glória, sede das almas. As demais sedes se apagam e morrem. Tendo subido o primeiro degrau, da afeição, o homem caminha seguro de si, sem temor servil. Livre do egoísmo, a vontade se põe acima de si mesma e acima dos bens passageiros. Se a pessoa quer possuir tais bens, ama-os e deles se serve em mim, com temor santo e verdadeiro, virtuosamente. Em seguida, passa-se ao segundo degrau, o da inteligência, no qual a pessoa, em cordial amor por mim, medita sobre Cristo crucificado, enquanto mediador. Por fim, a memória enche-se da minha caridade e alcança paz e a tranquilidade.
   Um recipiente vazio, ao ser tocado, faz rumor; o recipiente cheio, nenhum som produz. Da mesma forma, quando a memória está tomada pela luz da inteligência e pelo amor, a pessoa já não se perturba diante das adversidades ou atrativos do mundo; está repleta da minha presença, como sumo bem; não sente falsas alegrias, nem impaciência. Quando o homem sobe (os três degraus comuns), suas faculdades unificam-se, colocam-se sob domínio da razão e "congregam-se" em meu nome. Uma vez reunidos os dois amores - por Deus e pelo próximo - com as três faculdades - a memória para reter, a inteligência para refletir e a vontade para amar - encontra-se o homem na minha companhia, forte e seguro; está na companhia das virtudes; caminha seguro de si. Estou presente nele!
   Parte, então, o cristão, inflamado de desejo santo, sequioso de ir pelo caminho da verdade, à procura da fonte da água viva. É o desejo da minha glória, da salvação pessoal e da santificação alheia que incentiva a caminhar, pois é o único meio que possibilita alcançar a meta final. Na saída, o coração está vazio de apegos terrenos. Mas enche-se logo! Nenhum recipiente permanece com vácuo; se não contiver objetos materiais, enche-se de ar. O mesmo acontece com o coração humano. Ao se retirar dele o apego dos bens materiais, enche-se com o "ar" celeste do amor divino e com a "água" da graça. Em posse deste dom, o caminhante entra pela porta de Cristo e bebe a água viva em mim, oceano de paz.

16.4 - Sumário e exortação

   Acabei de mostrar-te como devem comportar-se as pessoas, em geral, para sair do rio do pecado, evitando o afogamento e a condenação eterna. Fiz ver quais são os três degraus comuns - as três faculdades - que são percorridos juntos. Expliquei aquela palavra de meu Filho: "Se dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" e afirmei que se trata da unificação dessas três faculdades com os dois principais mandamentos da lei, o amor por mim e pelo próximo. Ao realizar tal ascensão ou unificação, a pessoa sente sede da água viva, põe-se a caminho, passa pela ponte seguindo as pegadas de Cristo, o qual é tal ponte. Como disse, Jesus grita como fazia no templo: "Quem tem sede, venha a mim e beba, pois eu sou a fonte da água viva", e vós correis à sua voz que chama. Expliquei o sentido dessas palavras, como devem ser compreendidas. Compreendes melhor, agora, como vos amo e quanto é grande a confusão dos pecadores que vão pela estrada do demônio, convidados por ele às águas mortas.
   Foi dado assim resposta à tua pergunta sobre o modo de comportar-se para não morrer no rio do pecado: a solução é subir para a ponte (de Cristo), unificando ou "congregando" (as faculdades) com o amor ao próximo. É preciso levar até minha presença o coração e a vontade qual recipiente, pois dou a beber a quem mo suplica; é necessário encaminhar-se pela estrada de Cristo crucificado com perseverança até a morte! Este modo de comportar-se é igual para todos os homens, qualquer que seja o estado de vida. Ninguém pode desculpar-se dizendo: "Sou casado, tenho filhos e compromissos sociais, por isso me dispenso de seguir tal estrada". Impedimentos não existem e nenhuma pessoa tem razões para falar assim! Já disse que todos os estados de vida são do meu agrado, quando vividos santamente. Todos os seres são bons; todos foram feitos por mim. Não criei as coisas para que vos causassem a morte, mas a vida. E nada existe mais fácil do que amar; nem nada mais agradável. Somente vos peço amor por mim e pelos outros, algo que pode ser feito em qualquer tempo, lugar ou condição. É suficiente amar e possuir os bens (materiais) para louvor e glória do meu nome!
   Já expliquei a ilusão dos pecadores. Não seguem a iluminação da fé, são egoístas, amam e possuem os bens materiais esquecidos de mim. Vão sofrendo, insuportáveis a si mesmos. Se não se converterem pela forma explicada (14.14), irão para a condenação eterna. Eis como hão de comportar-se todas as pessoas, em geral. Até eu te falei da vivência própria dos cristãos da "caridade comum", isto é, daqueles que praticam os mandamentos, mas somente seguem os conselhos intencionalmente. Passo a ocupar-me dos que iniciam a escalada (da ponte) e desejam um caminho mais perfeito, obedecendo concretamente seja aos mandamentos como aos conselhos.
   Vou mostra-los em três estados, como que em três degraus especiais, dos quais já falei "em comum" ao tratar das faculdades da alma. Um estado é imperfeito, o segundo mais perfeito, o terceiro perfeitíssimo; no primeiro (o homem) se comporta como servo assalariado, no segundo como servo fiel, no terceiro como filho, ou seja, como pessoa que me ama sem interesses pessoais. São três estados que podem acontecer em diversas pessoas ou (sucessivamente) numa única pessoa. Acontecem ou podem acontecer numa mesma pessoa quando ela progride esforçadamente, aproveitando o tempo, e passa do estado servil ao liberal, e do liberal ao filial.
   Eleva-te pela fé e contempla como caminha a humanidade peregrina! Uns com imperfeição, outros obedecendo perfeitamente aos mandamentos, outros ainda vivendo perfeitissimamente os conselhos evangélicos. Verás donde procede a imperfeição, donde a perfeição; entenderás como é grande a ilusão daqueles que não matam a raiz do egoísmo, já que em qualquer estado de vida, urge destruir o amor-próprio.  
62 - Repito que o termo "sensualidade" tem um sentido especial em Catarina. Trata-se da parte sensível do homem enquanto perturbada pelo pecado original e fortemente inclinada para o mal.
65 - Catarina resume um ponto de doutrina importante no seu esquema ascético-místico: sem a observância dos "dois" mandamentos (amor de Deus e do próximo) é impossível unificar em Deus as três faculdades (inteligência, memória e vontade) e vice-versa. Para progredir na caminhada do espírito, é preciso por em sintonia a vivência exterior (mandamentos e conselhos) com a psicologia espiritual interior (unificação das faculdades em Deus).
       

CATARINA PEDE EXPLICAÇÕES SOBRE OS DEGRAUS DA PONTE

15 . CATARINA PEDE EXPLICAÇÕES SOBRE OS DEGRAUS DA PONTE

Então aquela serva, inflamada de desejo santo, refletia sobre a imperfeição pessoal e alheia. Sofria pelo que escutara (de outros) e vira (pessoalmente) sobre a cegueira humana. De um lado (via) a bondade divina, que nada pusera no mundo como impedimento à santificação dos homens, qualquer que fosse o estado de vida; as criaturas até favorecem e provam as virtudes. De outro lado, via tantos a rodar pelo rio do pecado, cheios de egoísmo e falso amor; sem se converterem, iam para a eterna condenação. Dos pecadores que começavam a deixar o rio do pecado, muitos voltavam atrás, levados pelas razões que Deus Pai bondosamente lhe explicara. Sentia-se amargurada. Fixou o pensamento da fé em Deus e lhe disse:
   - Ó Amor sem preço, como é grande a ilusão dos homens! Se fosse do teu agrado, eu ficaria contente de que me falasses com mais detalhes sobre os três degraus do corpo do teu Filho, sobre o que devem fazer os pecadores para sair de uma vez do pélago e se conservarem no caminho da Verdade; enfim, sobre quais são os homens que sobem pela escada do corpo de teu Filho!