quarta-feira, 9 de outubro de 2013

DEUS PAI EXPLICA EM QUE SENTIDO CRISTO É PONTE

12 - DEUS PAI EXPLICA EM QUE SENTIDO CRISTO É PONTE.

12.1 - Descrição da ponte

   Então o Pai eterno, a fim de atrair e incentivar aquela serva no trabalho da salvação dos homens, assim lhe respondeu:
   - Antes de revelar-te algo que tenho em mente sobre o assunto que me interrogas, quero descrever-te a ponte. Já disse (10.4) que ela se estende do céu à terra, graças à união (hipostática) que realizei com o homem formado do limo da terra. Essa ponte é meu Filho e possui três degraus: dois deles foram construídos no madeiro da cruz e o terceiro, quando ele na amargura bebeu fel e vinagre. Em tais degraus reconhecerás três estados da alma, como abaixo explicarei (16 e 18). O primeiro degrau é formado pelos pés; significam o amor, pois como os pés transportam o corpo, assim o (duplo) amor faz caminhar a alma. Os pés cravados na cruz servem-te de degrau para atingir a chaga do peito, que te revela o segredo do coração. Após subir até os pés pelo amor, o homem fixa o pensamento no coração aberto de Cristo e saboreia sua caridade inefável e consumada. Disse caridade "consumada", porque Cristo vos ama sem interesse pessoal; em nada sois de utilidade para ele, que forma uma só coisa comigo. Vendo-se amada, a pessoa se enche da caridade. Enfim, após atingir o segundo degrau, chegar-se ao terceiro, que é a boca de Cristo. Nela o homem encontra a paz, depois (de vencer) a grande guerra contra as próprias culpas. No primeiro degrau o cristão se afasta da afeição terrena, despoja-se dos vícios; no segundo, adquire as virtudes; no terceiro, goza a paz. São três, portanto, os degraus da ponte: passa-se do primeiro ao segundo, para atingir o último. A ponte é alta; quando se passa por ela, a água do pecado não atinge a alma. Em Jesus não houve pecado.

12.2 - Cristo atrai a si todas as coisas
 
   Essa ponte acha-se no alto, mas não separada dos homens. Sabes quando se ergueu? No momento em que Cristo foi elevado no lenho da cruz. Então, a natureza divina continuava unida à vossa pequenez; meu Filho amalgamara-se com a natureza humana. Antes de ser erguida, ninguém passava por tal ponte. Jesus mesmo disse: "Quando eu for elevado, atrairei a mim todas as coisas" (Jo 12,32). Julguei que não havia outra maneira de vos atrair; enviei, pois, meu Filho para ser cravado na cruz, bigorna em que seria fabricado o filho do homem 34, livrando-o da morte e restituindo-o à vida. Ao manifestar sua imensa caridade, meu Filho atraiu a si todas as coisas. É sempre o amor que atrai o coração humano. Dando a sua vida por vós, ele revelou o amor maior (Jo 15,13). Quando não existe no homem a oposição maldosa, a força do amor atrai sempre.
 Portanto, segundo quanto afirmou, meu Filho atrairia a si todas as coisas ao ser elevado na cruz. Essa verdade pode ser entendida de duas maneiras. Primeiro, no sentido explicado. Porque o coração humano, ao ser atraído pelo amor, leva consigo todas as faculdades da alma: a memória, a inteligência, a vontade. Quando são harmonizadas e reunidas tais faculdades, todas as ações humanas - corporais ou espirituais - ficam-me agradáveis 35, pois unem-se a mim na caridade. Foi exatamente para isso que meu Filho se elevou na cruz, trilhando os caminhos do amor cruciante. Ao dizer, "Quando eu for elevado, atrairei a mim todas as coisas", ele queria significar: quando o coração humano e as faculdades forem atraídas, todas as demais faculdades e suas ações também o serão. Em segundo lugar, há outro significado: que todos os seres foram criados para o homem. Os demais seres devem servir ao homem, não o contrário. Só a mim ele há de servir, com todo o afeto do seu coração. Compreendes, então? Se a humanidade for atraída, todos os demais seres a seguirão, pois para o homem foram criados.
   Tal é a finalidade por que a ponte, Cristo, foi colocada no alto, e por que possui três degraus: para ser mais facilmente percorrida.

12.3 - O material da ponte

   O pavimento desta fonte é feito de pedras, a fim de que a chuva (da justiça divina) não retenha o caminhante. "Pedras" são as virtudes verdadeiras e reais. Antes da paixão de meu Filho, elas ainda não tinham sido assentadas, motivo pelo qual os antigos não atingiam o céu, mesmo que vivessem piedosamente. O paraíso ainda não fora aberto com a chave do Sangue, e a chuva da justiça divina impedia a caminhada. Quando aquelas pedras foram assentadas no corpo do meu Filho - por mim comparado a uma ponte - foram embebidas, amalgamadas e assentadas com sangue. Em outras palavras: o sangue (humano) foi misturado com a cal da divindade e fortemente queimado no calor da caridade. Tais pedras foram postas em Cristo por mim, mas é nele que toda virtude é comprovada e vivificada. Fora de Jesus ninguém possui a vida da graça. Ocorre estar nele, trilhar suas estradas, viver sua mensagem. Somente ele faz crescer as virtudes, somente ele as constrói como pedras vivas, cimentando-as com o próprio sangue. Nele, todos os fiéis caminham na liberdade, sem o medo da justiça divina, pois vão cobertos pela misericórdia, descida do céu no dia da encarnação. Foi a chave do sangue de Cristo que abriu o céu.
   Portanto, esta ponte é ladrilhada, seu telhado é a misericórdia. Possui também uma despensa, constituída pela hierarquia da santa Igreja, que conserva e distribui o Pão da vida e o Sangue. Assim, minhas criaturas, viandantes e peregrinas, não fraquejam de cansaço na viagem. Para isto ordenei que vos fosse dado o Corpo e o Sangue do meu Filho, Homem-Deus.

12.4 - Os dois caminhos

   Para atravessar a ponte, chega-se a uma porta, que é o próprio Cristo; por ela todos os homens devem passar. Disse Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida; quem vai por mim não caminha nas trevas, mas na luz" (Jo 8,12); e em outra passagem afirma que ninguém pode chegar a mim a não ser por meio dele (Jo 14,6). Se ainda bem recordas, foi o que te disse uma vez e fiz ver. Se Jesus diz que ele é o caminho, profere uma verdade. Eu o mostrei a ti na figura de uma ponte; sua afirmação é verdadeira; ele está unido a mim, suma Verdade. Quem o segue caminha na Verdade. Ele é também a Vida; seus seguidores possuem a vida da graça, não padecem fome; ele é o alimento. Nem vivem na escuridão; Jesus é a Luz. Em Cristo não existe mentira. Pela verdade ele confundiu e destruiu a mentira do demônio, enganador de Eva. Aquela mentira destruíra a estrada (do céu); Jesus a reconstruiu no seu sangue. Quem vai por tal caminho é filho da Verdade, atravessa a ponte e chega até mim, Verdade eterna, oceano de paz.
   Quem não trilha esse caminho, vai pela estrada inferior, no rio do pecado. É uma estrada sem pedras, feita somente de água, inconsistente; por sobre ela ninguém vai sem se afundar. É o caminho dos prazeres e das altas posições, daqueles cujo amor não repousa em mim e nas virtudes, mas no apego desordenado ao que é humano e passageiro. Tais pessoas são como a água, sempre a escorrer. À semelhança daquelas realidades, vão passando. Eles acham que são as coisas criadas, objeto de seu amor, que se vão; na realidade, também eles caminham continuamente em direção à morte. Bem que gostariam de deter-se, reter na vida, segurar as coisas que amam. Seriam felizes se as coisas não passassem. Perdem-nas todavia, seja por causa da morte, seja pelos acontecimentos com que faço escapar-lhes das mãos os bens deste mundo. Tais pessoas vão pela mentira, por suas estradas; são filhos do demônio, pai da mentira. Entram por essa porta e vão para a condenação eterna.
   Mostrei-te, assim, o meu caminho, o da Verdade, e o caminho do demônio, que é o da mentira. São duas estradas. Ambas exigem fadiga. Vê como é enorme a maldade, a cegueira humana. Sendo-lhe preparada a ponte, o homem prefere ir pela correnteza.
   A estrada da ponte é muito agradável aos caminhantes. Toda amargura se torna doce; todo peso, leve. Embora na obscuridade dos sentidos, vão na luz; embora mortais, já possuem a vida sem fim. Pelo amor e pela fé, saboreiam meu Filho, Verdade eterna, que prometeu o prêmio para os que por mim se afadigam. Sou grato, reconhecido e justo; pagarei com equidade, segundo o merecimento. Toda ação boa será remunerada, assim como toda culpa será punida. Tua linguagem é insuficiente a descrever o gozo concedido a quem segue este caminho; nem teus ouvidos seriam aptos a escutar e os olhos a ver. Experimentam-se neste caminho coisas reservadas para a outra vida!
   Como é louco aquele que despreza tão grandes bens, indo pelo rio, em baixo; prefere alimentar-se, já nesta vida, com aperitivos do inferno. Segue por entre muitos sofrimentos, sem satisfações, na carência de todo bem. Tudo isso, porque se privou de mim, sumo e eterno Bem, pelo pecado. Tens razão em lamentar-te! Quero que outros servidores sintam contínua tristeza porque sou ofendido; que sintam compaixão diante da maldade e ruína dos pecadores.
   Tens desse modo a descrição da ponte. Disse todas essas coisas, para revelar-te que meu Filho unigênito é uma ponte, conforme afirmara antes. Agora sabes que de fato ele une as alturas com a pequenez!

12.5 - Cristo é ponte pela sua mensagem

   Quando meu Filho retornou a mim, quarenta dias após a ressurreição, aquela ponte se ausentou da terra, isto é, da convivência dos homens, e subiu ao céu pela força da divindade, sentando-se à minha direita. No dia da Ascensão, um anjo disse aos apóstolos, - que ali haviam ficado como mortos, já que seus corações tinham ido para o céu com meu Filho: "Não permaneçam aqui, pois ele está sentado à direita do Pai" (Atos 1,11).
   Com o retorno de meu Filho ao céu, enviei o Mestre, o Espírito Santo. Ele veio no meu poder, na sabedoria do Filho e na própria clemência. É uma só coisa comigo e o Filho. Por sua vinda, fortaleceu o caminho-mensagem deixado no mundo por Jesus. Ao afastar-se fisicamente, não retirou sua mensagem e suas virtudes; estas são pedras assentadas na mensagem, que ficou na forma de doce e gloriosa ponte. Inicialmente (na vida oculta), ele se esforçou por construir a estrada mais com ações do que com ensinamentos. Antes de falar, agiu. E Espírito Santo, em sua clemência, veio confirmar a mensagem de Cristo, e fortaleceu os discípulos na confirmação da verdade e no anúncio da mensagem de Cristo crucificado. Por meio deles o Espírito repreendeu o mundo pelas injustiças e falsos julgamentos, do que falarei com mais vagar em outra parte.
   Expliquei tais coisas, para que não ficassem dúvidas na mente dos que escutam e viessem a dizer: "É verdade que o corpo de Cristo se tornou uma ponte pela união (hipostática) da natureza humana com a divina; mas aquela ponte (corporal) subiu ao céu e nos deixou. Cristo foi um caminho, ensinou a Verdade, viram-se os seus exemplos e costumes... Mas agora, que nos restou? Onde encontramos o caminho?" Respondo a ti e àqueles que caírem em semelhante ignorância. O caminho ensinado por meu Filho foi confirmado pelos apóstolos, garantido pelo sangue dos mártires, esclarecido pelos santos doutores, iluminado pelos confessores; dele falam os escritos dos evangelistas. Todos eles foram testemunhas a confirmar tal verdade na hierarquia da santa Igreja. Foram lâmpadas colocadas sobre o candelabro a indicar o caminho da Verdade, o qual sem erro conduz à Vida com iluminação perfeita. Como confirmaram a mensagem de Cristo? Vivendo-a em si mesmos. Assim, todos os homens recebem luzes para conhecer a Verdade. Basta que cada um o queira, que não destrua a luz da razão pelo egoísmo desordenado. A mensagem de Jesus é verdadeira e ficou no mundo qual pequena barca, para retirar os pecadores do rio do pecado e conduzi-los ao porto da salvação. Primeiro, coloquei meu Filho como ponte-pessoa, a conviver com os homens; após sua morte, ficou a ponte-mensagem, possuindo ela meu poder, a sabedoria do Filho e o amor do Espírito. O poder fortifica os caminhantes, a sabedoria ilumina e ajuda a conhecer a Verdade, o Espírito Santo infunde o amor que aperfeiçoa, que destrói o egoísmo e conserva no homem o apego ao bem. Por qualquer forma, como ponte-pessoa ou ponte-mensagem, meu Filho é o caminho, a verdade e a vida, a passagem que conduz às alturas celestiais. Tais coisas queria ele dizer, com as expressões: "Eu vim do Pai e volto ao Pai" (Jo 16,28) e "voltarei a vós" (Jo 14,8); como se afirmasse: "Meu Pai enviou-me até vós, fez de mim uma ponte, pela qual atravessai o rio do pecado e chegais à Vida". Com a sua outra expressão: "Voltarei a vós, não vos deixarei órfãos; vou enviar-vos o Paráclito", é como se dissesse: "Irei para o Pai e voltarei mediante o Espírito Santo, chamado Paráclito; ele indicar-vos-á  mais claramente a estrada verdadeira, ou seja, a mensagem que vos dei e que ele confirmará".
   Jesus falou que voltaria e voltou. O Espírito Santo não veio sozinho. Veio no poder do Pai, na sabedoria do Filho e na própria clemência. Como vês, meu Filho não retornou no seu corpo, mas no poder que fortalece a estrada-mensagem. Esta nunca será destruída, nunca obstruída para os que a desejam percorrer. É firme, estável, pois procede de mim que sou imutável. Caminhai virilmente por ela, sem nenhuma dúvida e na luz da fé, que vos dei como principal veste no santo batismo.

12.6 - Sumário e exortação

   Acabo de falar-te de maneira completa sobre a ponte: a ponte-pessoa e a ponte-mensagem, que constituem uma só coisa. Mostrei (12.5) quem indica o caminho verdadeiro aos que o desconhecem. São os apóstolos, os evangelistas, os mártires, os confessores, os santos doutores, colocados como luzeiros na santa Igreja. Fiz ver (12.5) que meu Filho retornou a mim e depois voltou a vós, não pessoalmente, mas na força do Espírito, quando este desceu sobre os apóstolos. Meu Filho voltará pessoalmente no juízo final, com majestade e poder divinos, para julgar o mundo. Aos bons, ele dará o prêmio pelas fadigas corporais e espirituais; aos maus, aos que vivem no pecado, dará o castigo eterno.
   De agora em diante, vou ocupar-me do que prometera 12.1); vou mostrar-te quem caminha imperfeita, perfeita e perfeitissimamente e a maneira como procedem. Falarei igualmente dos pecadores, que se afogam no rio do pecado, a caminho de horríveis tormentos.
   A vós, filhos queridos, eu digo: conservai-vos pela ponte; não vades pelo rio. Este último não é a estrada da verdade, mas da mentira; por ela vão os maus. Por eles quero que rezeis; em favor deles vos peço lágrimas e suor, para que achem em mim a misericórdia!
 
34 - Esta expressão é aqui aplicada ao homem novo, remido por Cristo.
35 - Mais adiante (16.3), Catarina explicará em que consiste esta reunião ou "congregação" das três faculdades em Deus.


 
  
 

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