segunda-feira, 30 de setembro de 2013

QUEIXA DIVINA

6 . QUEIXA DIVINA

  
Então Deus, ébrio de amor pela nossa salvação, encontrou um modo de aumentar ainda mais a caridade e a dor daquela serva, fazendo-a compreender com quanto amor criara a humanidade. Disto já falamos alguma coisa antes. Dizia-lhe:
   -Não vês como todos me ofendem? No entanto eu os criei numa grande chama de amor; dei-lhes graças e favores quase infinitos, gratuitamente, sem nenhum merecimento deles. Olha, minha filha, quanto me ofendem. Especialmente por egoísmo, do qual procedem todos os outros males.  O amor-próprio tudo envenenou. Da mesma forma como a caridade contém todas as virtudes benéficas aos homens, assim o egoísmo procede do orgulho e contém todos os males. Por falta de amor, os homens praticam mutuamente o mal. Não me amam nem se amam. Estes dois amores vão sempre juntos. Por isto eu te dizia (2.5) que todo mal é feito no próximo.
   Tenho muito a me queixar dos homens. De mim só receberam o bem e eles me odeiam, praticando toda espécie de mal. Afirmei que somente as lágrimas de meus servidores aplacarão minha ira. Torno a repeti-lo. Servidores meus, colocai-vos diante de mim com muita oração, repletos de dor e tristeza por causa das ofensas cometidas contra mim e por causa da condenação eterna dos maus. Mitigareis a ira do meu julgamento.
   Ninguém escapará de minhas mãos. "Sou aquele que sou" (Ex 3.14) e vós, vós não possuís a razão do próprio ser. Sois aquilo que eu fiz. Criei tudo o que participa do ser; somente o pecado não procede de mim, porque é negação. Por não estar em mim, o pecado não merece amor. Quem o faz, ofende toda criação e odeia-me. O homem tem obrigação de me querer bem. Sou imensamente bom, dei-lhe o ser numa chama de caridade. Todavia, os maus fogem de mim. Mas por justiça ou misericórdia, ninguém escapa de minhas mãos.
   Abre, pois, os olhos da fé e fixa-os em minhas mãos. Verás como é verdade o que acabei de dizer... 

CATARINA ROGA PELO MUNDO

5 . CATARINA ROGA PELO MUNDO

 Então aumentou o conhecimento daquela serva. Imensamente alegre e confortada, colocou-se diante da majestade de Deus com muita esperança na misericórdia divina. Seu amor era inexprimível, pois via que o Senhor estava disposto a perdoar aos homens em sua bondade. Embora se comportasse eles como inimigos, Deus providenciara o instrumento e o modo pelo qual seus servidores iriam cativar sua benevolência e aplacar sua ira. Sentindo Deus a seu lado, aquela serva se alegrava, não temendo as perseguições do mundo. A chama do amor cresceu tanto , que ela se sentia não realizada; era com confiança, porém, que implorava pelo mundo.

   Embora já estivesse contido na segunda petição o pedido da felicidade e bem-estar dos cristãos e não-cristãos, assim mesmo ela estendia sua prece em prol do mundo inteiro, conforme a inspiração do próprio Deus. Ela clamava:
   - Deus eterno! misericórdia para com tuas criaturas. Tu és o bom Pastor. Não demores em ter piedade do mundo. Parece que os homens não estão mais unidos a ti, Verdade eterna. Nem mesmo entre si, pois não se amam com uma caridade baseada em ti.

sábado, 28 de setembro de 2013

SÃO MIGUEL ARCANJO



 
QUIS UT DEUS?
 
Consagração a São Miguel Arcanjo

(Para se rezar todos os dias) 
Príncipe nobilíssimo da hierarquia angélica, valoroso guerreiro do Altíssimo, amante zeloso da glória do Senhor, terror dos anjos rebeldes, amor e delícia de todos os anjos justos, meu diletíssimo Arcanjo São Miguel.
 
Desejando pertencer ao número dos vossos devotos e servos, ofereço-me todo a vós, dou-me e dedico-me e coloco todo o meu ser, todos os meus interesses, minha casa, família e quanto possuo sob a vossa proteção. É pequena a oferta da minha servitude, não sendo eu senão um miserável pecador, mas grande é o afeto de meu coração. 
Lembrai-vos de que hoje em diante estou sob o vosso patrocínio e vós deveis em toda a minha vida assistir-me; procurar-me o perdão dos meus muitos pecados; alcançar-me a graça de amar de todo o coração ao meu Deus, ao meu amado Salvador Jesus, a minha doce mãe Maria e, ainda, conseguir-me o que for necessário para chegar à coroa da glória.
 
Defendei-me sempre dos inimigos da minha alma, especialmente no último momento da minha vida. Vinde então, príncipe gloriosíssimo, assistir-me no último combate e, com a vossa arma poderosa, atirai para longe de mim, no abismo do inferno, aquele anjo prevaricador e soberbo que prostrastes um dia num combate no céu. Amém.
 
 
Oração a São Miguel Arcanjo
 
 
 
São Miguel Arcanjo,
protegei-nos no combate;
defendei-nos com vosso escudo
contra as armadilhas
e ciladas do demônio.
Deus o submeta,
instantemente o pedimos;
e vós, Príncipe da milícia celeste,
pelo divino poder,
precipitai no inferno a Satanás
e aos outros espíritos malígnos
que andam pelo mundo
procurando perder as almas.
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Amém.
  
 
 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

DEUS FALA DOS PECADOS DOS CRISTÃOS

4 . DEUS FALA DOS PECADOS DOS CRISTÃOS

4.1 - Triste situação da Igreja

   Então Deus Pai, deixando-se levar pelas lágrimas e reter pelos laços do desejo santo daquela serva, olhou misericordiosamente para ela e queixou-se nestes termos:
   - Filha muito amável, tuas lágrimas me coagem, porque estão unidas a mim e são derramadas por amor; prendem-me os teus sofrimentos íntimos. Olha e vê quanto minha Esposa sujou a sua face, como está leprosa por causa da impureza e egoísmo; como está intumescida pela soberba e ganância dos cristãos e mesmo dos membros da hierarquia. Falo dos ministros que se alimentam de sua riqueza e são encarregados de nutrir o povo fiel e aqueles que aspiram por deixar o paganismo e filiar-se como membros da minha Igreja. Considera com quanta maldade, incompreensão e ingratidão, com que mãos imundas são distribuídos seu alimento e seu sangue. Vê com que desconsideração e falta de respeito os mesmos são recebidos. É esse o motivo porque muitas vezes se torna fator de morte aquilo que deveria infundir a vida! Tal coisa se verifica com o Sangue precioso do meu Filho unigênito. Tal sangue afastou a morte e a escuridão, trouxe a luz e a Verdade, confundiu a mentira. Foi ele que propiciou todos os bens, quais sejam a salvação e a total perfeição dos homens. Exige apenas as boas disposições. Se de um lado produz a vida divina e todos os benefícios da graça de acordo com a acolhida e amor de quem o recebe, do outro causa a morte para aqueles que vivem no pecado. Sim! Para aqueles que recebem indignamente, em estado de pecado mortal - e unicamente por culpa sua - este Sangue produz a morte, não a vida. Isto acontece não por falha do Sangue (de Cristo) ou do ministro, mesmo que este se encontre em situação igual ou pior. O pecado do ministro não prejudica, nem mancha o Sangue, não diminui o poder da graça. O mau ministro não prejudica a pessoa a quem distribui o Sangue de Cristo; prejudica somente a si mesmo, pois comete um pecado digno de castigo, a menos que se arrependa mediante uma sincera contrição e afastamento da culpa.
   Repito: o Sangue de Cristo é prejudicial a quem o recebe indignamente, não por falha da Eucaristia ou do ministro; somente por más disposições ou defeitos pessoais, como sejam a maldade e a impureza, que mancham o espírito e o corpo, e as grandes maldades contra si mesmo e o próximo. A maldade contra si mesmo consiste na perda da graça, quando o homem egoisticamente despreza os dons recebidos no batismo. Neste a virtude do Sangue cancelara a mancha do pecado original, transmitido pelo pai e pela mãe no momento da concepção.

4.2 - A obra redentora de Cristo

   Estando a humanidade corrompida pelo pecado do primeiro homem, Adão, enviei o Verbo, meu Filho unigênito. Todos vós, vasos modelados no mesmo barro, estáveis contaminados e sem condições para aceder à vida eterna. Então eu, o Altíssimo, me uni à pequenez da vossa natureza humana. Desejava remediar a corrupção e morte do homem, restituindo-lhe a graça perdida com o pecado. Todavia, a mim, Pai eterno, era impossível sujeitar-me ao sofrimento e minha justiça exigia o castigo da culpa. Os homens eram incapazes de dar a satisfação; e, se isso acontecesse, cada pessoa teria que fazê-lo para si mesma, não por todos os outros. Na realidade, nenhum de vós tinha capacidade de dar reparação, nem por si, nem pelos outros, já que a culpa atingira meu ser infinito. Queria eu, então, reconstruir a humanidade; ela, enfraquecida, não podia dar a reparação ao mal. Enviei, pois, o Verbo, meu Filho unigênito, revestido de vossa natureza, a corrompida matéria de Adão. Nessa natureza, ele haveria de sofrer, morreria mesmo, para aplacar minha ira. Por tal maneira satisfiz a minha justiça, saciei-a pela misericórdia, pois esta última queria cancelar a culpa humana e preparar a humanidade àquela bem-aventurança para a qual a havia criado.
   Assim unida à divindade, a humanidade pôde dar a reparação. Como? Seja mediante o sofrimento humano de Cristo, seja pela virtude da natureza divina infinita do Verbo encarnado. Desta união das duas naturezas, recebi e aceitei o sacrifício do Sangue. Era sangue humano, mas mesclado, amalgamado com a natureza divina, como fogo do meu amor. Este amor foi o único laço que reteve Jesus quando cravado na cruz. Foi somente dessa forma - na virtude da divindade (de Cristo) - que se tornou possível a reparação da culpa humana; foi assim que se cancelou a mancha do pecado de Adão. Dela restou apenas uma cicatriz, que é a inclinação para o mal e os defeitos corporais, à semelhança da cicatriz que fica quando uma pessoa é curada de uma ferida.
   A ferida causada pela culpa de Adão era mortal. Ao chegar o grande médico, meu Filho unigênito, ele curou o doente, sorvendo a medicina amarga, impossível de ser tomada pela fraqueza humana. Cristo comportou-se como a ama-seca, que bebe o remédio em lugar da criança, dado que ela é grande e forte, ao passo que a criança é fraca e não suporta o amargor. Cristo foi o substituto. Graças ao poder e fortaleza da divindade que nele se achava unida à natureza humana, tomou o medicamento amargo, a morte na cruz, para curar e restituir a vida a vós, crianças enfraquecidas pelo pecado.

4.3 - Responsabilidades dos cristãos

   Do pecado original, que contraís através do pai e da mãe na concepção, restou-vos somente uma cicatriz. Ela é apagada, embora não completamente, pelo batismo, ao qual o Sangue de Cristo concedeu a virtude de infundir a vida da graça. Quando alguém é batizado, imediatamente cancela-se o pecado original e infunde-se a graça; a inclinação para o pecado, descrita antes como uma cicatriz, fica enfraquecida e submetida ao controle da pessoa. Assim, o homem dispõe-se a receber e aumentar a graça em si mesmo. O resultado, para mais ou para menos, depende do seu esforço em servir-me com amor e anseio. Embora possuindo a graça batismal, a pessoa pode encaminhar-se livremente para o bem ou para o mal. É ao atingir o uso da razão que praticará o bem ou o mal, conforme agradar ao arbítrio de sua vontade.
   Aliás, tão grande é a liberdade humana, de tal modo ficou fortalecida pelo precioso Sangue de Cristo, que demônio ou criatura alguma pode obrigar alguém à menor culpa, contra o seu parecer. Acabou-se a escravidão; o homem ficou livre. Agora, ele pode dominar a sensualidade e chegar à meta para a qual foi criado. Ó homem infeliz, que prazerosamente te enlameias no lodo, como um animal, e não reconheces os imensos favores que te dei! Pobre criatura! Mais não poderias receber, e no entanto vives cheia de misérias!
   Minha filha, procura compreender! Ao obter a graça, os homens são recriados no Sangue do meu Filho unigênito. Como disse, a graça foi restituída aos homens; mas se não a aceitam, passarão do mal para o pior. Desprezando meus benefícios, de pecado em pecado me ofendem. Além de não reconhecerem o auxílio da graça, até acham que cometo ofensas; afirmam que não desejo a sua santificação! Pois bem, quero esclarecer: semelhantes pessoas merecem um castigo mais severo! Agora que tiveram a redenção mediante o Sangue de meu Filho, a punição será mais grave do que antes, quando ainda não fora cancelada a ferida causada pela culpa de Adão.
   É razoável que produza mais frutos aquele que mais recebeu; é razoável que seja maior sua dívida diante daquele de quem recebeu. Muito já me devia a humanidade. Dera-lhe o ser, ao criar o homem a minha imagem e semelhança. Então ele possuía a obrigação de dar-me glória. Recusou-se a fazê-lo, glorificou a si mesmo, não aceitou a obediência por mim imposta, tornou-se meu inimigo. Então, com humilhação, destruí sua soberba. Humilhei-me (em Cristo), assumi vossa natureza, libertei-vos da escravidão do demônio, tornei-vos livres. Se prestares atenção, não somente vos fiz livres; de fato o homem tornou-se Deus e Deus se fez homem, graças à união (hipostática) da natureza divina com a humana.
   O tesouro do Sangue, pelo qual a humanidade foi recriada ficou sendo uma dívida. Entendes, pois, como depois da redenção, o homem tem maior obrigação para comigo. Devem-me glória e louvor. Uma dívida de amor para comigo e o próximo, que é paga quando as pessoas seguem as pegadas de meu Filho unigênito, Palavra encarnada, mediante a prática das virtudes interiores, das quais já falei (2.8).
   Por causa desta obrigação de amar-me muito, em caso negativo, o pecado é maior. Eis a razão por que minha justiça divina pune com pena maior, com a condenação eterna. O cristão infiel padecerá mais que o homem não batizado. Embora sem destruí-lo, por justiça divina o atormenta mais o fogo. Como? Pelo tormento e aflição do remorso. Sem destruí-lo, porque os condenados (ao inferno) não são aniquilados por nenhum de seus padecimentos. Digo-te que eles bem que pedem sua destruição, mas não a alcançam, pois jamais serão reduzidos ao nada. Devido à culpa, perderam o ser da graça, não o ser da natureza.
   Desse modo, após a redenção da culpa é punida com mais rigor do que antes. Os redimidos receberam mais. No entanto, parece que não se preocupam com isso, não temem os próprios pecados. Tornaram-se inimigos meus, embora resgatados pelo Sangue do meu Filho.

4.4 - Os servidores de Deus e a reforma da Igreja

   Há um remédio capaz de aplacar minha ira. São os meus servidores, quando se esforçam por coagir-me ao perdão com suas lágrimas, por reter-me com os laços do amor. Com essa corrente tu me amarraste! Dei tais servidores a ti 30, porque desejava ser misericordioso para com o mundo. É por tal motivo que infundo neles o ardor e o desejo de glorificar-me, bem como de salvar os homens. Quero ser coagido por suas lágrimas, diminuir a violência de minha justiça. Tu e os meus servidores, portanto, hauri lágrimas e suor na fonte da minha divina caridade! Lavai a face da minha Esposa! Prometo que por tal forma lhe será devolvida a beleza. Não é pela espada, guerra ou crueldade que ela irá reaver sua formosura, mas pela paz, pelas orações humildes e contínuas, pelo suor e lágrimas amorosamente derramados pelos meus servidores. É assim que realizarei o teu desejo: com grandes sofrimentos, tua paciência iluminará as trevas em que vivem os pecadores do mundo. Não tenhais medo se o mundo vos perseguir. Estarei convosco; em nada vos faltará minha providência.

30  - Com a palavra "servidores", o Diálogo indica evidentemente os discípulos de Catarina. Por essa forma se vê como o livro quer ser um manual de formação dos futuros reformadores.

 


    





 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - CATARINA IMPLORA A MISERICÓRDIA DIVINA

3 . CATARINA IMPLORA A MISERICÓRDIA DIVINA


3.1 - Angústias e esperanças de Catarina

   Então aquela serva sentiu-se cheia de ardor e inflamada de grandíssimo desejo. Experimentava interiormente inefável amor pela imensa bondade divina, ao tomar conhecimento e ver a extensão de seu amor. Como grande amabilidade, Deus se dignara de responder a sua petição; dignara-se também a mitigar a amargura que a serva sentia ante as ofensas cometidas contra ele, ante os prejuízos sofridos pela santa Igreja, ante a própria miséria. Deus lhe infundira esperança. O autoconhecimento fazia a sua amargura, ao mesmo tempo, diminuir e aumentar, pois o Pai eterno, após ter lhe mostrado o caminho da perfeição (2.3), havia revelado quanto era ofendido e qual o dano que os homens recebiam. Destas coisas, porém, falarei mais largamente em seguida (4.1ss).
   No autoconhecimento o homem conhece melhor a Deus. Ao contemplar a bondade divina em si e no espelho da divindade, ele compreende que tem em si uma dignidade e uma indignidade. Dignidade por reconhecer-se imagem divina por dom gratuito da criação; indignidade por ver no espelho da divindade o pecado humano. Quem se olha num espelho vê as manchas do próprio rosto;  o mesmo acontece com a pessoa que, com amor e fé, se comtempla em Deus. A pureza divina mostra-lhe melhor os defeitos da própria face.
    Mas iluminada e esclarecida, aquela serva sentia que sua angústia aumentava e ao mesmo tempo diminuía. Diminuía pela esperança que a Verdade eterna lhe dera; mas, da mesma forma como cresce uma chama ao receber matéria combustível, assim ergueu-se o ardor daquela serva, chegou ao clímax. O corpo humano parecia não resistir e morrer. Não fosse a força da proteção divina, certamente não conseguiria mais viver. A chama do amor divino purificou-lhe a alma e a serva foi introduzida no conhecimento de si e de Deus. Cresceu o ardor, na esperança de salvar o mundo inteiro, de reformar a santa Igreja. O Pai eterno lhe fizera ver a lepra da santa Igreja e a miséria do mundo. Com segurança colocou-se diante dele e falando como Moisés, disse:

3.2 - Súplica à Trindade

   Meu Senhor, olha com misericórdia para o teu povo e para a hierarquia da santa Igreja. Se perdoares a tão numerosas criaturas, concedendo-lhes a iluminação da inteligência, serás mais glorificado que só por mim, pobrezinha que tanto pequei, responsável por todos os males. Livres das trevas do pecado mortal e da condenação eterna por tua infinita bondade, todos te louvariam. Por essa razão eu te suplico, caridade divina e eterna, que te vingues sobre mim. Tem piedade do teu povo! Não me afastarei de tua presença enquanto não perceber que usaste de misericórdia para com o teu povo. Que prazer teria eu em ganhar a vida eterna, se teu povo estivesse na morte e se a escuridão aumentasse na tua Esposa - que é toda luz - por causa dos meus pecados e dos pecados dos demais? Eu quero, portanto, e imploro tal graça; que tenhas piedade do teu povo, pela caridade incriada que te levou a criar o homem à tua imagem e semelhança, quando disseste: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26).
   Ó sublime e eterna Trindade, agiste assim a fim de que a humanidade participasse do teu ser: deste-lhe a memória, Pai eterno, para que se recordasse do teu benefício, possuindo algo do teu poder; deste-lhe a inteligência com que conhecesse tua bondade e tivesse parte na sabedoria do Filho; deste-lhe vontade para amar tudo quanto a inteligência compreendesse da tua Verdade, e com isso participasse da clemência do Espírito Santo.
   Qual foi a razão que te levou a colocar o homem em tão sublime dignidade? Certamente o incompreensível amor, com que o pensaste e dele te enamoraste! Por amor criaste o homem e lhe deste o ser, desejoso de que saboreasse o teu sumo e eterno Bem. Como o compreendo! Pelo pecado o homem perdeu a dignidade em que o colocaras; rebelou-se, entrou em guerra com tua clemência. Tornamo-nos inimigos teus. Tu, movido pelo mesmo fogo criador, providenciaste o modo de reconciliar a humanidade decaída durante a guerra. A fim de transformar essa guerra em grande paz, deste-nos o Verbo, teu Filho, como Mediador. Ele tornou-se nossa justiça (1Cor 1,30). Tomou sobre si mesmo nossas maldades, realizou o que tu, Pai eterno, lhe impuseras por obediência. Tudo a partir do momento em que o revestiste de nossa natureza, pois ele a assumiu.
   Ó abismo de amor! Que coração não explodiria ao ver o Altíssimo descer até a pequenez da nossa humanidade! Somos tua imagem, és a nossa imagem pela união feita no homem, quando a divindade se velou sob a miserável nuvem e corrompida matéria de Adão! Tudo por amor! Sendo Deus, te fizeste homem, e o homem se fez Deus! Pois bem, por esse amor inexprimível eu te obrigo e imploro: usa de misericórdia para com tuas criaturas!    
 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE VI

2.10 - Deus quer ações retas, não palavras

   O que desejo do homem, como frutos da ação, é que prove suas virtudes na hora oportuna. Talvez ainda te recordes! Quando, há muito tempo, desejavas fazer grandes penitências por minha causa e perguntavas: "Que mortificações eu poderia fazer por ti?", eu te respondi no pensamento: "Sou aquele que gosta de poucas palavras e de muitas ações". Então era minha intenção mostrar-te que não me comprazo no homem que apenas me chama por palavras: "Senhor, Senhor, gostaria de fazer algo por ti", ou naquele que pretende mortificar o corpo com muitas macerações, mas sem destruir a vontade própria. Queria dizer-te que desejo ações varonis e pacientes, bem como as virtudes internas, de que falei acima, as quais são todas elas operativas e produtoras de bons frutos na graça.
   Ações baseadas em outros princípios constituem para mim meras palavras, realizações passageiras. Eu, qual ser infinito, quero ações infinitas, amor infinito. Desejo que as mortificações e demais exercícios corporais sejam considerados como meios, não como fins. Se neles repousar o inteiro afeto da pessoa, ser-me-ia dado algo de finito, à semelhança de uma palavra que, ao sair da boca, já não existe, quando é pronunciada sem amor. Só o amor produz e revela a virtude!
   Quando uma ação, que chamei com o nome de "palavra", está embebida de caridade, então me agrada; já não se apresenta sozinha, mas acompanhada de discernimento verdadeiro, isto é, como ato que é meio para se atingir um objetivo superior. Não é exato olhar a penitência ou qualquer ato externo como base e finalidade principal; são obras limitadas, seja porque praticadas durante esta vida passageira, seja porque um dia a pessoa terá que deixa-las por resolução pessoal ou por ordem alheia. Umas vezes a abandonará o homem coagido pela impossibilidade de continuar o que começou, e isto acontece em situações diversas; outras vezes por obediência à ordem do superior. Aliás, neste caso, se as continuar não terá merecimento algum e cometerá até uma falta.
   Como percebes, as mortificações são coisas finitas e como tais hão de ser praticadas. São meios, não finalidade. Quem as assume como finalidade, sentir-se-á vazio quando tiver de abandoná-las. Foi quanto ensinou o glorioso apóstolo Paulo ao vos convidar em sua carta (Cl 3,5) a mortificar o corpo e a destruir a vontade própria, ou seja, a refrear o corpo mortificando a carne, quando ela se opõe ao espírito. A vontade própria deve ser destruída e submetida à minha. Tal coisa é feita pela virtude do discernimento, como expliquei antes, com o desprezo do pecado e da sensualidade, por efeito do autoconhecimento. Eis a espada que mata e corta todo egoísmo; eis os servidores que  não me apresentam somente "palavras", mas ações. Eles formam o meu prazer. É em tal sentido que afirmava eu que desejo poucas palavras e muitas ações!
   Ao dizer "muitas", não me refiro à quantidade. É o desejo da alma, alicerçado no amor que vivifica as virtudes, que há de atingir o infinito. Também não quis manifestar desprezo pela palavra! Apenas afirmei que desejava "poucas palavras", a indicar que todas as ações externas são finitas. Indiquei-as com o termo "poucas", mas elas bem que me agradam quando são feitas como meios para adquirir a virtude, sem a conotação de objetivo principal.
   Não se deve considerar como mais perfeito o grande penitente que arrasa o seu corpo, ao fazer a comparação com alguém que se mortifica menos. Como já disse, seu merecimento não está nisso. Se assim fosse, mal estaria quem por razões legítimas não pode fazer atos de penitência externa e vive unicamente na prática do amor, sob a luz do discernimento, sem poder agir diversamente. O discernimento leva o homem a amar-me sem limites, sem restrições, já que sou a Verdade suma e eterna. È relativamente ao amor ao próximo, que o discernimento impõe limites e formas de amar.
   Ao brotar da caridade, o discernimento faz amar o próximo ordenadamente. Pela caridade exercida com retidão, ninguém pode pecar, prejudicando-se sob pretexto de ser útil aos outros. Não seria caridade com discernimento se alguém cometesse um só pecado para salvar o mundo inteiro do inferno ou para adquirir um grande ato de virtude. Seria falta de discernimento, pois é ilícito fazer uma grande ação virtuosa ou beneficente através de um ato pecaminoso. O verdadeiro discernimento ordena-se da seguinte forma: faz o homem orientar todas as suas faculdades a me servirem com virilidade e solicitude; amar o próximo realmente, mesmo sacrificando mil vezes a vida corporal, se fosse possível, para a salvação alheia; suportar dificuldades e aflições para que o outro possua a vida da graça; colocar os seus bens materiais a serviço do outro. Eis quanto realiza o discernimento na medida em que procede do amor.
   Compreendes, assim, que o homem que deseja ter a graça, com discernimento tributar-me-á amor infinito, sem restrições; quanto ao próximo, ter-lhe-á juntamente com esse amor infinito uma caridade ordenada, não se prejudicando com pecados sob pretexto de ajuda-lo. A esse respeito vos advertiu São Paulo (1Cor 13,1ss) que a caridade deve começar por si mesmo, pois de outra forma não seria de perfeita utilidade para os demais. No caso de imperfeição interior, imperfeitas serão as obras feitas para si e para o próximo. Não é certo que alguém para salvar pessoas finitas e criadas por mim, viesse a ofender-me enquanto Bem infinito. Seria mais grave e de maiores proporções a culpa que o efeito decorrente. Por motivo algum, portanto, deves cometer o pecado. Sabe disto a caridade verdadeira, a qual possui a iluminação do discernimento santo.
   O discernimento é uma luz que dissolve a escuridão, afasta a ignorância e alimenta as virtudes, bem como as ações externas que conduzem à virtude. Ele constitui uma atitude prudente que não padece enganos, uma atitude perseverante que não pode ser vencida.
O discernimento estende-se do céu à terra, isto é, do conhecimento do meu ser até o conhecimento do próprio ser, do meu amor ao amor pelo próximo. E sempre com humildade. Prudentemente ele evita e sai ileso de todos os laços do demônio e dos homens. Sem outras armas além da paciência, ele superou o demônio. Mediante essa doce e gloriosa iluminação, a carne reconheceu a própria fraqueza; desprezou-se; venceu o mundo; submeteu-o a um amor maior; envileceu-o; como senhor, dele fez caçoada!
   Devido ao discernimento, os seguidores do mundo são incapazes de destruir as virtudes internas; ao contrário, suas perseguições até as fazem aumentar, servindo-lhes de prova. Como indiquei, as virtudes são concebidas interiormente no amor e depois se revelam, exteriorizam-se através do próximo. Assim, se as virtudes não se mostrarem, agindo exteriormente no tempo da perseguição, é sinal de que não se tratava de verdadeira virtude interna. Já disse e expliquei que uma virtude não será perfeita, nem frutificará, senão em benefício dos homens. Acontece como para a mulher que concebeu um filho; enquanto não der à luz a criança, de modo que a veja a sociedade, seu marido não dirá que tem um filho. Sucede o mesmo comigo, esposo da alma; até que a pessoa não exteriorize sua virtude no amor do homem, revelando-a de acordo com as urgências em geral ou em particular, afirmo que na realidade não é interiormente virtuosa. O mesmo afirmo quanto aos vícios, pois todos eles são cometidos contra os homens.

2.11 - Sumário e exortação

   Acabas de ver como eu, a Verdade, revelei a ti os princípios pelos quais poderás atingir e conservar uma grande perfeição.
   Expus como dás reparações pela culpa e pelo reato em ti mesma e nos outros. A tal respeito eu ensinava que as mortificações suportadas pelo homem nesta vida mortal, por si mesmas são insuficientes a satisfazer pela culpa e pelo reato; hão de estar acompanhadas pelo amor caritativo, pela contrição verdadeira, pelo desapego do pecado. A penitência exterior possui valor satisfatório, quando enformada pela caridade. O valor não procede dos atos corporais, quaisquer sejam eles, mas unicamente do amor e dor sentida pela culpa cometida. Tal amor é adquirido sob a luz de uma inteligência e de um coração desinteressados e livres, inteiramente voltados para mim, que sou o Amor.
   Expliquei tudo isto porque me pediste, desejosa de sofrer. Eu queria que tu e meus servidores conhecêsseis o modo de vos oferecerdes a mim em holocausto, num sacrifício ao mesmo tempo corporal e espiritual, à semelhança de um copo de água dado ao patrão; como o oferecimento da água seria impossível sem o copo, e como a apresentação do copo sem a água lhe seria desagradável, assim acontece convosco. O vaso que me dais são os inúmeros sofrimentos externos, preparados por mim sem que vós escolhais lugares, tempos ou tipos de dor. Tal vaso há de encontrar-se cheio, isto é, deveis sofrer com paciência e amor. Como? Suportando, tolerando os defeitos alheios, odiando e desprezando o pecado. Assim, tais mortificações, comparadas por mim a um vaso, estarão repletas da água da graça, que vivifica a alma. Então acolhe o presente das minhas amáveis esposas, ou seja, de todos aqueles que me servem. Aceito seus desejos, lágrimas, suspiros, suas orações humildes e contínuas. Em meu amor considero tudo isso como instrumento capaz de aplacar minha ira contra os iníquos pecadores, que tanto me ofendem.
   Resisti virilmente até a morte! Tal será a prova de que realmente me amais. Não deveis por a mão no arado e olhar para trás por medo de pessoas ou dores. Antes, alegrai-vos nas tribulações! O mundo se rejubila, injuriando-me muito. Ao ver tais ofensas, ficareis entristecidos. Quando me ataca, ele vos ofende. E vice-versa, pois me tornei uma só coisa convosco. Eu vos dera a minha imagem e semelhança; vós a perdestes pelo pecado. Para conceder outra vez a vida da graça, uni minha natureza com a vossa (em Cristo), revestindo-a de vossa humanidade. Como éreis minha imagem, assumi a vossa, tomando forma humana. Sou, pois, uma coisa convosco, se não vos afastais pelo pecado. Quem me ama, encontra-se em mim e eu nele (1Jo 4,16).
   O mundo me persegue porque não possui conformidade comigo. Perseguiu meu Filho até a terrível morte na cruz.. O mesmo fará convosco (Jo 15,18). O mundo vos persegue e o fará até à morte, porque não me ama. Se me amasse, também vos amaria. Alegrai-vos, porém! Vossa glória no céu será perfeita.
   Digo-te ainda! Quanto maiores forem as dificuldades da hierarquia da santa Igreja, maior será sua felicidade e consolação. A "felicidade" consistirá na reforma dos pastores, os quais se tornarão bons e santos. Serão flores de glória, no sentido que exalarão o perfume das verdadeiras virtudes, dando-me glória e louvor. Tal será a reforma dos meus ministros e pastores: como flores perfumadas. Quanto aos frutos, a Igreja não precisa de reforma, dado que eles não diminuem, nem são prejudicados pelos defeitos dos ministros.
   Alegrai-vos, portanto, nas dificuldades. Tu, o teu diretor espiritual e os outros servidores meus. Qual Verdade eterna eu prometi-vos dar-vos consolação. Dá-la-ei depois da provação, pelo muito que suportardes pela reforma da santa Igreja.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE V



2.8 - É na dificuldade que se provam as virtudes  

   Acabei de explicar como, sendo útil ao próximo, o homem manifesta seu amor por mim. Agora vou dizer como cada pessoa mostra possuir a paciência ao ser injuriada pelos outros; a humildade, quando se acha diante do orgulhoso; a fé, diante do infiel; a esperança, na presença de quem nada espera; a mansidão e a benignidade, ante o irascível. Todas estas virtudes revelam sua existência e são exercitadas no próximo, da mesma forma como é nele que os maus cometem seus pecados.
   Vê bem. É diante da soberba que aparece a humildade. O homem humilde vence o orgulho, pois o orgulhoso é incapaz de prejudicar quem é humilde. Do mesmo modo o descrente - que não me ama, nem em mim espera - não faz diminuir a fé do homem fiel ou a esperança daqueles que a possuem no coração por meu amor. Ao contrário, até as faz crescer e manifestar-se mediante o amor altruísta. Meu servidor, percebendo que se trata de um descrente ou desesperado que não confia em mim, nem nele - pois aquele que não me ama, também não acredita em mim, não confia em mim, mas deposita a sua afeição na própria sensualidade - meu servidor não deixa de amar verdadeiramente tal pessoa, certo de que ainda encontrará em mim a salvação. Como vês, o servidor fiel comprova sua fé na descrença e na desesperança alheia. Em casos semelhantes e em qualquer outro que ocorra, ele demonstra possuir a virtude.
   Assim, a virtude da justiça não diminui diante das injustiças; evidencia-se até, pois a justiça se revela na paciência. Também a benignidade e a mansidão são evidenciadas pela doce paciência no tempo do ódio; e o amor caridoso, todo cheio da sede e desejo da salvação alheia, torna-se visível diante da inveja, do desprezo e ódio. Mais ainda! Além de provar que são virtuosas, pagando o mal com o bem, tais pessoas frequentemente atiram brasas de amor, as quais consumirão a raiva e o rancor do coração do irascível, levando-o a passar da ira à benevolência. Tudo isso acontece, graças à caridade e perfeita paciência daquele que suporta a raiva e demais defeitos do malvado. Relativamente às virtudes da fortaleza e perseverança, elas são comprovadas mediante os longos sofrimentos, as ofensas, as difamações daqueles que procuram afastar o servidor fiel do caminho verdadeiro, seja com atrativos, seja com ameaças. Quando o servidor fiel possui a fortaleza interior, mostra-se realmente forte e perseverante, dando prova disso no contato com os homens. Quando alguém não resiste no tempo das contradições, é sinal de que não possuía uma virtude verdadeira.

2.9 - O cristão precisa de humildade, caridade e discernimento

   Tais são as ações santas e agradáveis, que exijo dos meus servidores, ou seja, as virtudes internas devidamente comprovadas. Eu não me contento com atos só exteriores, corporais, realizados em diferentes e numerosas mortificações, com atos que na realidade são apenas meios para se atingir a virtude. Tais penitências pouco me agradam, se não se fazem acompanhar das virtudes internas, indicadas acima. Digo mais: se uma pessoa se penitencia sem discernimento, pondo todo o seu afeto na mortificação enquanto tal, até impedirá sua perfeição. Quem se penitencia há de valorizar o amor, desprezar a si mesmo, ser humilde, paciente; há de ter todas as virtudes, deve alimentar o desejo da minha glória e a salvação dos homens. Essas virtudes mostrarão que seu egoísmo morreu e que perenemente destrói a sensualidade através do amor pela virtude.
   É com tal discernimento que se deve praticar a penitência. Em outras palavras: é mister dar mais importância às virtudes que à mortificação. Esta última será um meio para aumentar as virtudes e será feita de acordo com a necessidade, na exata medida das forças pessoais. Aqueles que consideram as mortificações como essencial, obstaculizam a própria perfeição. Seria esta uma atitude tomada sem a iluminação do autoconhecimento e sem a exata consideração da minha bondade; estaria fora do reto caminho. Seria uma atitude sem discernimento, que valoriza o que eu não valorizo, que não despreza o que eu desprezo. O discernimento consiste num exato conhecimento de si e de mim; o discernimento enraíza-se nesse autoconhecimento. É como um rebento intimamente unido à caridade.
   Qual árvore de muitos galhos, a caridade possui numerosos filhos. Como as árvores recebem a vida de suas raízes enterradas no solo, assim a caridade se nutre na humildade, e o discernimento é um dos filhos ou rebentos da caridade. Não existindo este solo da humildade, o discernimento não seria verdadeira virtude, nem produziria frutos de vida. A humildade brota do autoconhecimento e o discernimento, como afirmei, consiste num real conhecimento de si e de mim, que faz o homem dar a cada um o que lhe pertence. Quanto a mim, dará glória, louvor e será grato pelas graças e favores recebidos; quanto a si mesmo, atribuirá o que julgar ter merecido, reconhecerá que nada é por si mesmo, consciente de que de mim recebeu gratuitamente o ser, agradecer-me-á por toda outra perfeição acrescentada ao ser. Julgar-se-á mesmo ingrato diante dos numerosos favores, negligente no aproveitamento do tempo e das graças, digno de castigo. O discernimento, enfim, ao fundamentar-se no humilde autoconhecimento, conduz à luta contra os pecados pessoais.
   Homem sem humildade é homem sem discernimento. Seu agir baseia-se no orgulho, da mesma forma como todo discernimento vem da humildade. Tal pessoa comporta-se ainda, como um ladrão, enquanto rouba minha glória e a atribui a si mesmo, no desejo de engrandecer-se. Em sentido contrário, atribui a mim o que é absolutamente seu; queixa-se e murmura contra os misteriosos desígnios que realizo em sua vida e na alheia; em tudo acha motivo de oposição a mim e ao próximo.
   Diversamente se comporta quem possui o discernimento. Depois de ter reconhecido como meu o que me pertence, cumpre para com os outros a grande dívida do amor e da oração humilde e contínua, como é seu deve; ensina, dá bom exemplo, auxilia materialmente segundo as necessidades. Disto já falei antes. Quem tem discernimento, qualquer que seja seu estado de vida - patrão, prelado ou súdito - sempre trata o próximo com amor. Caridade e discernimento estão intimamente entrelaçados; ambos se enraízam no solo da verdadeira humildade, sendo esta o fruto do autoconhecimento.
   Sabes qual é a relação mútua dessas três virtudes?
   É como se tivesse no chão um círculo, do qual brotasse um tronco de árvore com um rebento ao lado. O tronco alimenta-se da terra contida no círculo e morreria, não daria frutos, se estivesse do lado de fora. Entende agora a comparação. A alma é uma árvore nascida para o amor; sem ele não vive. Privada do amor divino da caridade, não produz frutos de vida, mas de morte. É mister que a raiz desta árvore brote no círculo do autoconhecimento. Este círculo está em comunhão comigo. Como ele, não tenho princípio nem fim. Quando te encontras dentro de uma circunferência, vais girando, e não achas nem início, nem termo. Igualmente o conhecimento de si e de mim realiza-se no terreno da humildade e possui a amplidão da circunferência do conhecimento do meu ser. Sem tal característica, o autoconhecimento não formaria um círculo sem princípio nem fim; começando por conhecer-se, acabaria na confusão, longe de mim. Em conclusão, é no terreno da humildade que se alimenta a caridade e com ela brota o rebento do discernimento verdadeiro.
   Medula ou cerne dessa árvore é a paciência. Esta virtude constitui o sinal externo de que eu estou numa alma e ela em mim.
   Plantada com imenso amor, semelhante árvore produz virtudes perfumadas, como flores numerosas e variegadas; produz o fruto da gratidão e da bondade para com os outros homens, pelo esforço dos meus servidores, para comigo; essa árvore produz o perfume da glória e do louvor. Assim, o homem realiza a finalidade para a qual o criei, ou seja, atinge a meta final, eu mesmo, vida permanente que jamais lhe será arrebatada sem o seu consentimento.
   Como vês, os frutos dessa árvore nascem do discernimento, na união comigo.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE IV

2.6 - Toda virtude é praticada no próximo

   Vou explicar-te agora que toda virtude se realiza no próximo, bem como todo pecado.
   Toda pessoa que vive longe de mim prejudica o próximo; e a si, dado que cada um é o primeiro próximo de si mesmo. Tal prejuízo
pode ser desordem geral ou pessoal. Em geral, porque sois obrigados a amar os demais como a vós mesmos. De que maneira? Socorrendo espiritualmente pela oração, dando bom exemplo, auxiliando quanto ao corpo e quanto ao espírito, conforme as necessidades. No caso de alguém nada possuir, pelo menos há de ter o desejo de auxiliar! Quem não me ama, também não ama os homens; por isso não os socorre. Quem despreza a vida da graça, prejudica antes de tudo a si mesmo, mas prejudica também os outros, deixando de apresentar diante de mim - como é seu dever - orações e aspirações em favor deles. Todo e qualquer auxílio prestado ao próximo deve provir do amor que se tem por aquela pessoa, mas como consequência do amor que se tem por mim. Da mesma forma, todo mal se realiza no próximo, e quem não me ama, também não tem amor pelos outros. A origem dos pecados está na ausência da caridade para comigo e para com o homem. Para fazer o mal, basta que se deixe de fazer o bem. Contra quem se age, a quem se prejudica na prática do mal? Primeiramente contra si mesmo; depois, contra o próximo. A mim, não me prejudica. Eu não posso ser atingido, a não ser no sentido de que considero feito a mim o que se faz ao homem. Será um prejuízo que leva à culpa com privação da graça e, nesse caso, coisa pior não poderia acontecer; ou será uma recusa de afeição e amor, obrigatórios e que exigem o socorro pela oração e súplicas diante de mim. Tudo isso é auxílio de ordem geral, porque é devido aos homens em comum.
   O auxílio de ordem pessoal consiste na colaboração prestada às pessoas com quem convivemos, pois existe a obrigação aos homens de se ajudarem mutuamente com bons conselhos, ensinamentos, bons exemplos e qualquer outra obra boa de que se necessite. O bom conselho há de ser desinteressado como se fosse dado a si mesmo, sem segundas intenções egoístas. Quem não me ama, certamente não agirá convenientemente e prejudicará aos demais. Nem serão apenas prejuízos por omissão do bem, mas ações más e danos até repetidos.
   Isto acontece da seguinte forma:
   O pecado é externo ou interno. Externo, aquele praticado visivelmente; mas procede de um apego interior ao mal e de um desprezo interior pelo bem. É uma ação que procede do egoísmo, que destrói no homem a caridade devida a mim e aos outros. É tal egoísmo que gera, um após outro, os pecados contra o próximo; de várias maneiras, conforme aprouver à vontade pervertida, chegando-se, às vezes a uma verdadeira crueldade, seja de modo geral  como particular. De modo geral, quando uma pessoa põe a si mesma e aos demais em perigo de morte espiritual e condenação eterna pela privação da graça. A maldade chega a ser tão grande que o homem, sem amor pelo bem e sem fugir do mal, já não cuida de si, nem dos demais. Ao invés de dar bons exemplos, age com malícia e faz o papel dos demônios, afastando os outros da virtude e levando-os, quanto pode, para o vício. Trata-se de uma autêntica crueldade contra a própria alma, no esforço de priva-la da graça e dar-lhe a morte espiritual. Por ganância, pratica ações más, deixa de auxiliar o próximo com os bens que possui e até se apossa do alheio, espoliando os mais pobres. Outras vezes, por abuso de autoridade ou por engano e fraude, obriga o vizinho a vender seus bens e até sua pessoa.
   Ó crueldade detestável, que não fruirás da misericórdia divina, a menos que o responsável retorne à piedade e ao amor pelos demais.
   Acontece também que o pecador diga palavras injustas, provocando até homicídios. Cometam-se ainda desonestidades e impurezas. Pessoas há que chegam a assemelhar-se aos animais irracionais, com muita podridão. Pior é que com tais atos não atingem apenas duas ou três pessoas, mas todos aqueles que deles se aproximam por amizade ou necessidade social. E a soberba, contra quem age? Exatamente contra o próximo, por causa da procura da fama pessoal. Acreditando-se maior que os demais, o orgulhoso desagrada aos outros e os ofende. No caso de ocupar cargos, pratica injustiças e maldades, qual mercador de carne humana.
   Ó filha querida, lamenta-te porque sou ofendido. Chora sobre esses mortos, para que sua morte espiritual seja vencida pela oração. Vê como, em toda parte e em todas as classes sociais, peca-se contra e através do próximo. É contra o homem que se age, de modo oculto e manifesto. De modo oculto, negando-lhe aquilo a que tem direito; de modo manifesto, através dos vícios de que te falei.
   É realmente verdade, portanto, que as ofensas cometidas contra mim acontecem através do homem.

   2.7 - É no homem que se ama a Deus

   Como disse, todos os pecados são cometidos através do próximo, no sentido de que eles são ausência da caridade, que é a forma de todas as virtudes. No mesmo sentido, o egoísmo, que é a negação do amor pelo próximo, constitui-se como razão e fundamento de todo o mal. Ele é a raiz dos escândalos, do ódio, da maldade, dos prejuízos causados aos outros. O egoísmo envenenou o mundo inteiro e fez adoecer a hierarquia da Igreja e o povo cristão.
   Já te disse que as virtudes se fundamentam no amor pelos outros; é da caridade que a virtudes recebem a vida. Sem ela nenhuma virtude existe, pois as virtudes se adquirem no puro amor por mim. Afirmei igualmente que o autoconhecimento produz na pessoa a humildade e a repulsa da paixão sensível, fazendo-a conscientizar-se da lei perversa que existe em seus membros e continuamente luta contra o espírito. Diante disto, o cristão luta e se opõe à sensualidade, com empenho a submete à razão e procura descobrir em si mesmo a grandeza da minha bondade. Inúmeros são os favores que lhe faço. Ao reconhecer que gratuitamente o retirei das trevas e o transferi para a verdadeira Sabedoria, no autoconhecimento ele se humilha. Assim consciente da minha benevolência, o homem me ama direta e indiretamente. Diretamente, não pensando em si mesmo ou em interesses pessoais; indiretamente, através da prática da virtude. Toda virtude é concebida no íntimo do homem por amor de mim; fora do ódio ao pecado e do amor à virtude, não existe maneira de me agradar e de se chegar até mim. Depois de ter concebido interiormente a virtude, a pessoa a pratica no próximo.
   Aliás, tal modo de agir é a única prova de que alguém possui realmente uma virtude. Quem me ama, procura ser útil ao próximo. Nem poderia ser de outra maneira, dado que o amor por mim e pelo próximo são uma só coisa. Tanto alguém ama o próximo, quanto me ama, pois de mim se origina o amor do outro.
   O próximo, eis o meio que vos dei para praticardes a virtude que existe em vós. Como nada podeis fazer de útil para mim, deveis ser de utilidade ao homem. Esta é a prova de que estou presente em vós pela graça: se auxiliais aos outros com orações numerosas e humildes, se desejais minha glória e a salvação dos homens. Quem se apaixona por mim, jamais cessa de trabalhar pelos outros, de modo geral ou particular, com maior ou menor empenho, segundo as disposições do beneficiado e do benfeitor. Disto já falei antes quando expliquei que a mortificação, sem o amor, é insuficiente para cancelar a culpa.
   Assim, graças ao amor que o une a mim, o homem torna-se útil ao próximo; preocupado com a salvação alheia, ama o próximo, presta-lhe serviços em suas necessidades. Depois de ter cuidado de si pela aquisição interior das virtudes, esforça-se por descobrir as precisões do próximo também no plano individual. Além de ajudar no plano geral, passa a prestar auxílios às pessoas mais próximas, de acordo com os diversos dons que lhe dei, ou seja, ensinando e orientando a uns com palavras, sem interesses pessoais, nem medo; a outros, com o bom exemplo. De fato, é obrigação de todos edificar os demais com uma vida boa, santa e honesta.
   São essas as virtudes que o homem pratica no próximo. Existem outras mais e seria impossível enumera-las todas. Idealizei-as em multiplicidade e não as concedo todas a todos; a uns, dou umas; a outros, outras. De fato, quem possui uma delas, possui todas, porque as virtudes são conexas. Embora eu conceda muitas virtude, uma delas será como que a principal entre as demais. Por exemplo, a uma pessoa darei como virtude maior a caridade, a outra a humildade, a outra a fé viva, a outra a prudência, a temperança, a paciência, a fortaleza. Tais virtude, e outras ainda, concedo aos homens diversificadamente; uma delas constituirá o elemento virtuoso preponderante, dispondo o indivíduo a uma vivência maior dessa virtude. Essa virtude maior dominará sobre todas as demais, porém todas elas estarão interligadas pela caridade, como já disse.
   Muitos são os dons, graças, virtudes e favores espirituais ou corporais, que concedi aos homens. Corporais são aqueles necessários à vida humana. Dei-os diversificadamente, isto é, não os coloquei todos em cada pessoa, para que fôsseis obrigados vos auxiliar mutuamente. Poderia ter criado os indivíduos dotando-os de todo o necessário, seja na alma como no corpo; mas preferi que um necessitasse do outro; que fôsseis administradores meus no uso das graças e benefícios recebidos. Dessa forma, querendo ou não, o homem haveria de praticar a caridade, muito embora não seja meritória a benevolência não realizada por meu amor. Como vês, a fim de que os homens exercitassem o amor, fi-los meus administradores e os coloquei em diferentes estados de vida, em diferentes posições. Isto vos mostra como existem muitas mansões em minha casa e como nada mais desejo que o amor. O amor por mim se consuma no amor pelo próximo; quem ama o próximo já observou a Lei. Quem me ama, pratica todo o bem possível, em seu estado de vida, para o benefício dos outros.

sábado, 21 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE III

2.4 - A satisfação reparadora mede-se pelo amor

   Logo que tu e meus servidores conhecerdes a minha Verdade através daquele caminho, tereis de sofrer tribulações, ofensas e desprezos por palavras e ações, até à morte. Tudo isso, para glória e louvor do meu nome. Sim, padecerás, sofrerás. Tu e meus servidores, portanto, armai-vos de muita paciência, arrependimento de vossos pecados e de amor à virtude, para glória e louvor do meu nome. Agindo assim, aceitarei a reparação das culpas tuas e dos demais servidores. Pela força do amor e da caridade, vossos sofrimentos serão suficientes para dar satisfação e reparação por vós mesmos e pelos demais.
   Pessoalmente, recebereis o fruto da vida; serão canceladas as manchas dos vossos pecados; já não me recordarei de que me ofendestes. Quanto aos outros, graças ao vosso amor, concederei o perdão em conformidade com suas disposições.
   Para aqueles que se dispuserem com humildade e respeito aos ensinamentos dos meus servidores, perdoarei a culpa e o reato. Como? No sentido de que tenham um autoconhecimento perfeito e a contrição dos pecados. Tais pessoas, graças à oração e à caridade dos meus servidores, obterão o perdão. Exige-se, porém, humildade no acolhimento; e obterão maior ou menor intensidade, de acordo com a intenção que tiverem de fazer frutificar a graça.
   Para os cristãos, em geral, afirmo que pelos vossos anseios haverão de obter a remissão e o cancelamento das culpas. A não ser que sua obstinação seja tamanha, que prefiram ser reprovados por má vontade, com desprezo do sangue com que foram amorosamente remidos. Estes, que favores receberão? Por consideração aos pedidos dos meus servidores, terei paciência com eles, iluminá-los-ei, suscitarei o remorso, farei que sintam gosto pela virtude, que provem prazer na amizade com meus servidores. Algumas vezes permitirei que o mundo lhes mostre a sua face e experimentarão numerosas e diferentes impressões. Quero que percebam a instabilidade do mundo e elevem seus desejos em direção à pátria eterna. Assim e com outros expedientes invisíveis aos olhos, inenarráveis para a língua e imperceptíveis ao coração - pois são inúmeros os caminhos e recursos de que me sirvo - unicamente por amor eu os convido à graça, desejoso de que minha Verdade se realize neles. O motivo que me leva a agir dessa forma é sempre inestimável amor com que os criei; é a oração; são os anseios; é a dor dos meus servidores. Jamais desprezo a lágrima, o suor, a sua oração humilde. Pelo contrário, aceito tudo isso, uma vez que sou eu mesmo que levo meus servidores a amar e a sofrer por causa da condenação alheia. A tais pessoas, porém, não é dado a remissão do reato. Elas não se encontram pessoalmente dispostas a acolher, mediante uma caridade perfeita, o meu amor e o amor dos meus servidores. Elas não sentem dor e contrição perfeitas dos pecados cometidos; sua caridade e contrição são imperfeitas. Eis o motivo por que não alcançam a remissão da pena, como aqueles de que falei antes, mas somente o perdão da culpa.
   Realmente, é mister que haja boa disposição de ambas as partes: em quem doa e em quem recebe a reparação. Sendo imperfeitos, estes últimos imperfeitamente acolhem os anseios de meus servidores, os quais com mortificações se oferecem a mim em seus lugares. Todavia, como disse acima, eles obtêm a reparação da culpa e são perdoados. Pelo modo explicado, isto é, mediante iluminação interior, pelo remorso, obtêm a satisfação da culpa. Começam a ter consciência das suas faltas, confessam-nas e recebem a graça. São os cristãos da "caridade comum"5. Se eles tudo aceitarem mediante conversão de vida, se não se opuserem ao amor do Espírito Santo, livrar-se-ão do pecado e alcançarão a graça. No entanto, se por maldade, se comportarem com ingratidão, sem reconhecimento para comigo e meus servidores, o dom a eles feito por misericórdia se transformará em juízo e ruína. Isto, não por falha da misericórdia, não por falta do servidor que por eles implorava, mas unicamente pela maldade e dureza que eles mesmos, livremente, puseram em seus corações, qual diamante que somente o sangue de Cristo consegue quebrar.
   Apesar de tal dureza, afirmo-te que tais pessoas, enquanto se acham nesta vida e possuem a liberdade, poderão invocar o sangue do meu Filho e derramá-lo sobre o próprio coração; então Cristo o romperá e elas receberão o fruto do sangue. Mas se demorarem, o tempo oportuno se esgotará. Já não haverá remédio, porque não aproveitaram o dom que lhes dera eu através da memória, para se recordarem dos benefícios recebidos; através da inteligência, para conhecerem a Verdade; e através da vontade, para me amarem como herança eterna. Sim, esse é o dom que vos entreguei e que deve voltar às minhas mãos paternas. Quando o homem vende ou dá ao demônio tal presente, então passa a caminhar com o maligno e leva consigo o que adquiriu na vida, ou seja, a memória cheia de recordações desonestas, de orgulho, de amor-próprio, de ódio e desprezo pelos outros, qual perseguidor dos meus servidores fiéis. Carregadas de tais pecados, essas pessoas não satisfazem pela culpa com a contrição, não abandonam o mal. A vontade lhes ofusca a inteligência e assim, na corrupção, vão para o fogo eterno.
5 - Cristãos da "caridade comum" são os leigos que vivem os mandamentos, mas não os conselhos evangélicos.

2.5 - Sumário e exortação

   Ficas assim sabendo que a penitência dá reparação à culpa  através da contrição perfeita, não em força das mortificações em si mesmas. Relativamente aos que se acham na via da perfeição, repara-se não somente pela culpa, mas também pelo reato; quanto aos que se acham na via da perfeição, repara-se não somente pela culpa mas também pelo reato; quanto aos que vivem na caridade comum, somente a culpa é perdoada. Estes últimos, libertos do pecado mortal, recebem o dom da graça, mas não possuindo uma contrição e amor suficientes para cancelar o reato, quando morrem vão para o Purgatório. Como vês, cada um oferece reparação de acordo com o grau de caridade que possui por mim, Bem infinito. Isso acontece tanto da parte daquele que doa orações e amor, como daquele que os recebe. Minha bondade age segundo a medida com que um doa e o outro acolhe.
   Alimenta, pois, a chama do teu amor! Não deixes passar um só minuto sem clamar diante de mim, com oração humilde e contínua, em favor dos pecadores. Rogo a ti e ao teu diretor espiritual, que vos comporteis virilmente. Vivei como mortos relativamente à própria sensualidade.
   Agrada-me o desejo de padecer dificuldades e cansaços até à morte, pela salvação dos homens. Quanto mais alguém suporta dores, mais demonstra que me ama. Amando-me, conhecerá melhor a Verdade, e quanto mais a conhecer, maior será sua dor por ver-me ofendido. Pedias-me sofrimentos, que punisse em tua pessoa os pecados alheios; não percebias que, na realidade, estavas implorando amor, luz, conhecimento da verdade. Já afirmei que a dor e os sofrimentos aumentam na medida do amor; quanto maior a caridade, maior a dor. Garanto-vos: pedi e recebereis (Jo 16,24)! Não deixo de atender a quem me suplica com retidão. Convence-te de que a caridade está intimamente unida à paciência; impossível perder uma delas, sem perder a outra. Ao optar pelo meu amor, o homem faz opção também de sofrer por minha cauda, qualquer seja a modalidade da dor. É na adversidade que se prova ter paciência e amor. Comportai-vos, portanto, virilmente. Agisndo de outra forma, não demonstrareis ser - nem o seríeis realmente - esposos fiéis e filhos da Verdade; nem provaríeis aspirar pela minha glória e pela salvação dos homens.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O DIÁLOGO - PARTE II



 II - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA FORMAÇÃO APOSTÓLICA


2.1 - A penitência sozinha não dá reparação à culpa

   Então a Verdade eterna arrebatou em si, com maior violência, o desejo daquela serva. Tal qual acontecia no Antigo Testamento, quando o fogo do céu descia sobre os holocaustos oferecidos a Deus e consumia a oferenda a ele agradável, a doce Verdade enviou o fogo do Espírito Santo sobre aquela serva e aceitou o sacrifício de amor que ela fazia de si mesma. Dizia-lhe:
   - Minha filha, não o sabes? Todos os sofrimentos que um homem suporta ou pode suportar nesta vida não são suficientes para satisfazer a menor culpa. Sendo eu um bem infinito, a ofensa contra mim pede satisfação infinita. Desejo que o compreendas. Os males desta existência não são punições, mas correção a filho que ofende. Assim, a satisfação se dá pelo amor, pelo arrependimento e pelo desprezo do pecado. Esse arrependimento é aceito no lugar da culpa e do reato, não pela virtude dos sofrimentos padecidos, mas pela infinitude do amor. Deus, que é infinito, quer amor e dor infinitos.
   A dor por ele desejada é infinita em dois sentidos: com relação à ofensa feita contra o Criador e com relação àquela feita ao próprio homem. Quem se acha unido a mim por um amor infinito, sofre quando me ofende ou vê que outros me ofendem; igualmente, quando padece no corpo ou no espírito, qualquer seja a sua origem, tem merecimento infinito. Dessa forma satisfaz pela culpa, que era merecedora do inferno. Embora praticadas no tempo finito, são ações válidas, pois fortalecem-nas as virtudes, a caridade, a contrição, o desprezo da culpa, que são infinitos.
   Foi quanto ensinou Paulo, ao afirmar: "Se eu falasse a língua dos anjos, adivinhasse o futuro, partilhasse os meus bens com os pobres, e entregasse o corpo às chamas, mas não tivesse a caridade, tudo isso de nada valeria" (1Cor 13,13). O glorioso apóstolo faz ver que os gestos finitos são insuficientes para punir ou satisfazer, sem a força da caridade.

2.2 - A culpa é reparada pelo amor
   
   Filha, fiz-te ver que a culpa não é reparada neste mundo pelos sofrimentos, suportados unicamente como sofrimentos, mas sim pelos sofrimentos aceitos com amor, com desejo ² , com interna contrição Não basta a força da mortificação; ocorre o anseio da alma. O mesmo acontece, aliás, com a caridade e qualquer outra virtude, que somente possuem valor e produzem a vida em meu Filho Jesus Cristo crucificado, isto é, na medida em que a pessoa dele recebe o amor e virtuosamente segue suas pegadas. Somente assim adquirem valor. As mortificações satisfazem pela culpa na feliz comunhão do amor, adquirido na contemplação da minha bondade. Satisfazem graças à dor e à contrição quando praticadas no autoconhecimento e na consciência das culpas pessoais. Esse conhecimento de si gera desprezo pelo mal, pela sensualidade ³, induz o homem a julgar-se merecedor de castigos e indigno de recompensa. Assim - acrescentava a doce Verdade _ é pela contrição interior, pelo amor paciente e pela humildade, considerando-se merecedora de castigos e não de prêmio, que a pessoa oferece reparação.

² - O desejo santo da glória divina e da salvação dos homens.
³ - A palavra sensualidade, no pensamento de Catarina, não inclui a conotação própria de lubricidade, própria do termo em português. Quer apenas indicar a sensibilidade humana, carregada de tendências para o mal, por efeito do pecado original.


2.3 - O caminho da Verdade

   Tu me pedes sofrimentos como reparação das ofensas cometidas contra mim pelos homens; desejas conhecer-me e amar-me como suma Verdade. O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência do meu ser - Vida eterna que sou - é este: nunca abandones o autoconhecimento! Ao desceres para o vale da humildade, reconhecer-me-ás em ti, e de tal conhecimento receberás tudo aquilo de que necessitas. Nenhuma virtude tem valor sem a caridade, no entanto é a humildade que forma e nutre a caridade. Conhecendo-te, tu te humilharás ao perceber que, por ti mesma, nada és. Verás que o teu ser procede de mim, que vos amei, a ti e aos outros, antes de virdes à existência. Além disso, quando quis recriar-vos na graça com inefável amor, eu vos lavei e vos concedi uma vida nova no sangue de meu Filho unigênito; naquele sangue derramado num grande incêndio de amor. Para quem destrói em si o egoísmo, é no autoconhecimento que tal sangue manifesta a Verdade. Não existe outro meio. Por meio dele, o homem em inexprimível amor conhece-me e sofre. Não com um sofrimento angustiante, aflitivo e árido, mas com uma dor que alimenta interiormente. Ao conhecer a Verdade, a alma sofrerá terrivelmente, pois toma consciência dos próprios pecados e vê a cega ingratidão humana. Nenhuma dor sofreria, se não amasse 4.
4 - Este parágrafo resume a doutrina catariniana da cela interior, isto é, do autoconhecimento em Deus.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O DIÁLOGO–Introdução


I - INTRODUÇÃO

1.1 - É pelo amor que o homem se une a Deus.

   Estava certa pessoa arrebatada em grandíssimo desejo da glória divina e da salvação dos homens...Exercitara-se durante algum tempo na prática da virtude, vivendo habitualmente na cela do autoconhecimento para melhor conhecer a Deus presente em si mesma. Quem ama procura seguir a Verdade e revestir-se dela. Não existe, porém, melhor modo de saborear a Verdade e de ser por ela iluminado, que a oração humilde e contínua, baseada no conhecimento de si e de Deus. Tal oração une o homem a Deus nas pegadas de Cristo crucificado; identifica-o com ele no desejo, na afeição, na união amorosa. Jesus parece afirmar tudo isso quando diz: "Quem ama guarda as minhas palavras e eu me manifestarei a ele; será uma só coisa comigo e eu com ele (Jo 14,21; 17,21). Em outras passagens bíblicas, ainda, encontramos expressões semelhantes, que revelam ser verdade o seguinte: pelo amor, o homem torna-se um outro Cristo!

   Para explicar-me melhor, recordo de ter ouvido de uma serva de Deus que, estando em oração, o Senhor não lhe ocultou seu amor pelos seus servidores, mas lho revelou dizendo entre outras coisas: "Usa a tua fé e fixa o pensamento em mim; verás a dignidade e a beleza do homem! Mas além da beleza que lhe provém da criação, presta atenção nestes que estão revestidos com a roupa nupcial da caridade, adornados com tantas e tão belas virtudes. Eles se acham unidos a mim pelo amor. Se me perguntares quem são - assim continuava o doce e amoroso Verbo - direi que são outro eu. Eles destruíram a vontade própria, revestiram-se da minha vontade, uniram-se a ela, a ela se conformaram". Realmente, é pelo amor que o homem se une a Deus.

1.2 - As quatro petições

   Desejando conhecer e seguir mais virilmente a Verdade, aquela serva elevou a Deus o seu anseio: primeiramente por si mesma, convencida de que ninguém pode ser de fato, útil aos demais através do ensino, do exemplo e da oração, se não cuidar de si pela aquisição das virtudes. Ela fez quatro petições ao Pai eterno: a primeira por si mesma; a segunda, pela reforma da santa Igreja; a terceira, de caráter geral, pelo mundo todo, sobretudo em favor da pacificação dos cristãos rebeldes que tanto pecam e prejudicam a santa Igreja; na quarta, rogava à Providência divina que cuidasse de todos, sobretudo de um caso particular.

1.3 - Catarina se oferece como vítima

   O ardor era grande, contínuo. E aumentou ainda mais quando a Verdade Primeira lhe revelou as necessidades do mundo, mostrando-lhe a sua confusão e pecados. Também uma carta do diretor espiritual ¹ falava de sofrimentos e dor intoleráveis, por causa das ofensas cometidas contra Deus, da condenação eterna de muitos e da perseguição contra a santa Igreja. Tudo isso lhe acendia a chama do desejo santo, num misto de tristeza pelos pecados e de alegria pela esperança de que Deus haveria de dar solução a tantos males.

   Como considerasse a eucaristia como o meio mais apto para a união do homem com Deus e maior conhecimento da Verdade - pois na comunhão o homem se acha em Deus e Deus no homem, como peixe no mar e o mar no peixe - aquela serva ansiava pela aurora a fim de ir à missa. Era um sábado, o dia de Maria. Amanheceu. Na hora da missa, sentiu um desejo imenso. Com profundo conhecimento de si, envergonhava-se da própria imperfeição. Parecia-lhe ser a causa de todos os males do mundo. Por essa razão odiava-se com santa justiça, desprezava-se. Esse conhecimento, ódio, justiça, purificaram-na dos pecados que julgava ter, e que de fato lhe estavam na alma.

   Dizia: "Ó eterno Pai, dirijo-me a ti para que castigues meus defeitos neste mundo. E porque, pelas minhas faltas, sou a responsável dos sofrimentos que meu próximo padece, rogo-te que bondosamente te desagraves em mim.

¹ O diretor de que fala o texto é o beato Raimundo de Cápua, religioso dominicano.

 

domingo, 15 de setembro de 2013

As Sete Dores de Nossa Senhora


AS SETE DORES DE NOSSA SENHORA


15 DE SETEMBRO

 
“Compaixão” de Nossa Senhora. Mãe e Filho unem-se num só coração para nos salvar.
 
 



A festa das Sete Dores de Nossa Senhora nasceu da piedade cristã, que se compraz em associar a Virgem Maria à paixão de seu Filho. Já no século XI as dores da Virgem Santa eram objeto de devoção particular. No século XIV apareceu o comovente Sabat Mater que uma tradição, aliás contestada, atribui ao bem-aventurado Jacopone da Todi. Celebrada com grande solenidade pelos Servitas no século XVII, a festa das Sete Dores da Virgem foi estendida por Pio VII a toda a Igreja, em 1814, a fim de lembrar os sofrimentos que ela acabava de atravessar na pessoa de seu chefe, primeiro exilado e cativo, depois solto graças à proteção da Virgem. Pio X, em 1912, fixou-a em 15 de setembro, oitava da Natividade. A Igreja, ao mesmo tempo que sublinha os sofrimentos de Maria, insiste igualmente no corajoso amor que a levou a tomar parte tão íntima na obra da nossa redenção. Ela é verdadeiramente aquela que, à semelhança de Judite perante a tribulação de seu povo, nada deixou de fazer para nos salvar da ruína. Oferecendo seu Filho por nós, tornou-se nossa Mãe e nós tornamo-nos seus filhos.

Fonte: Missal Romano Quotidiano. Dom Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de Santo André.

sábado, 14 de setembro de 2013

Exaltação da Santa Cruz


EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

14 de Setembro

 

Salve Santa Cruz, vitoriosa da serpente infernal, tu, que entre céu e terra elevaste Jesus, nova serpente de bronze, fonte de vida para quem contempla com amor confiante.



 

A festa de 14 de setembro teve primeiramente por único objeto o aniversário da descoberta da Santa Cruz por Santa Helena e a dedicação das basílicas constantinianas, consagradas em Jerusalém a 14 de setembro de 335, no próprio local do Santo Sepulcro e do Calvário. Mais tarde, porém, uma confusão de datas fez passar para 14 de setembro a memória de outro acontecimento que suplantou o primeiro: a restituição da Santa Cruz pelos persas em 629. Levada de Jerusalém, quinze anos antes, após uma vitória dos persas, foi reconduzida para Jerusalém pelo imperador Heráclio, vencedor por sua vez dos exércitos persas.

A liturgia da Santa Cruz é uma liturgia triunfante: a Igreja celebra nela a vitória de Cristo sobre a morte e o glorioso troféu da nossa redenção. Já a serpente de bronze erguida por Moisés sobre o povo, o anunciava: a salvação nos havia de vir da exaltação de Jesus sobre o madeiro da Cruz.
 
Fonte: Missal Romano Quotidiano.  Dom Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de Santo André.